EJA em Natal: desafios pós-debate no Conselho Municipal de Educação

Por Alessandro Augusto de Azevêdo

Semana passada, dia 19, fomos agraciados por uma inédita iniciativa do Conselho Municipal de Educação de Natal, no sentido de discutir a situação da Educação de Jovens e Adultos no município. A atividade se deu de forma remota e foi transmitida pelo canal do YouTube da Prefeitura Municipal de Natal (https://www.youtube.com/watch?v=fN7-DuW-1T8), com o título: “A Educação de Jovens e Adultos: olhares e perspectivas no município de Natal. A atividade contou com a presença do prof. Alexandre Aguiar (UFRN), além de representações do SINTE-RN, da própria Secretaria Municipal de Educação (SME Natal), Fórum Potiguar de EJA, de professores e professoras da rede, bem como de uma estudante da EJA, que deu um depoimento acerca de sua trajetória na modalidade.

É importante situarmos em que contexto a atividade se deu para dimensionarmos sua importância: na retomada do período letivo em formato presencial (ou híbrido), as direções das escolas da rede pública municipal foram surpreendidas por um movimento estranho, da parte do  SNOE (Setor de Normas e Organização Escolar), no sentido de que as escolas devolvessem ao setor de recursos humanos aquele(a)s professore(a)s que atuam na EJA, nos casos em que o número de matrículas registradas por essas escolas, para a modalidade, estivessem abaixo do que o Setor considerava adequado. Tal movimento se deu a partir de contatos telefônicos, sem que tenha havido quaisquer discussões anteriores com o(a)s diretore(a)s das escolas ou, ao menos, publicação de uma Portaria com a definição de critérios e orientações claras que justificassem o que estava sendo proposto.

Isso desencadeou uma articulação envolvendo diretore(a)s de escolas, professore(a)s e a coordenação do Projeto EJA em Movimento, a partir do que foi confeccionado um Abaixo-Assinado, com ampla circulação, angariando um total de 190 assinaturas e foi protocolado junto ao gabinete da SME, Promotoria Pública e Conselho Municipal de Educação, além da presidência da Comissão de Educação da Câmara Municipal de Natal.

Paralelamente, chegava ao Conselho Municipal de Educação a proposta de Plano Plurianual(2022-2025), encaminhada pela Prefeitura Municipal de Natal, onde se estabelece uma média de 6 mil matrículas/ano na EJA, merecendo críticas da parte de alguns dos membros do Conselho acerca da base a partir da qual se estabelecia aquela meta.

As críticas faziam sentido, já que desde 2007 (quando se instituiu o FUNDEB, sendo a EJA incluída no cálculo do fundo) há uma tendência declinante de registro das matrículas na rede pública municipal. Se em 2007, a rede contava com 9 mil matrículas, enquanto que em 2019 (antes da pandemia), este número não alcançava os 6 mil. Em 2021, a matrícula alcançou o quantitativo de pouco mais de 4 mil matrículas.

A redução absoluta – em torno de 40% a 50% das matrículas, dependendo do ano de referência – é estarrecedora por vários motivos, mas podemos apontar pelo menos duas razões que não podem ser trazidas ao debate como explicação: (a) o aumento exponencial das taxas de escolarização da população de nosso município acima de 18 anos – que compõe a maior fatia do grupo de sujeitos que procuram a modalidade; nem (b) a descontinuidade administrativa, dado que desde 2007 – excetuando-se o intervalo entre 2009 e 2012 – a gestão da Secretaria Municipal de Educação sempre esteve sob o comando do mesmíssimo grupo político.

Em relação ao primeiro aspecto, todos os indicadores apontam o crescimento da demanda potencial do público da EJA, seja em virtude da inalteração significativa das taxas históricas de distorção idade; seja pelos efeitos perversos de nossas ancestrais desigualdades socioeconômicas que empurram cerca de 80 milhões dessa população acima dos 15 anos, no Brasil, e cerca de 1 milhão, em nosso Estado, para longe de nossas escolas, na medida em que têm que se dedicarem precocemente à participação no sustento da vida familiar.

Em relação ao segundo, não há surpresas. De forma clara ou dissimulada, as sucessivas gestões da Prefeitura se sustentam sobre gestores, nos mais diversos escalões da administração pública, que tem um entendimento infelizmente majoritário – e que, em certa medida, ultrapassa até mesmo opções ideológicas – de que: (a) educação escolar é algo que deve ser oferecida apenas às crianças e adolescentes; (b) que é perda de tempo (e dinheiro) investir energia e recursos (físicos ou humanos) em pessoas que “não querem nada”, “não tem projeto”, “não tem condições de acompanhar”, e outras negatividades; e, por fim, (c) pessoas que, pela faixa etária, não teriam ganhos em termos de empregabilidade, pela ampliação da escolaridade. Por tudo isso, configura-se uma visão de que essa modalidade é para os “atrasados”, podendo ser oferecida em condições precárias, de forma pouco organizada, recrutando profissionais pelo critério da “sobra” de carga horária.

O fato é que a EJA que temos na capital do Estado é amplamente pobre. Não me refiro, aqui, ao sentido relativo ao público que atende, porque, de fato, são ele(a)s – os pobres - quem acorre às escolas para, teimosos que são, buscarem obter a conclusão da Educação Básica. Uma teimosia cidadã, diríamos, porque o direito à educação, para muitos deles, é a porta para a conquista de outros direitos que dão dignidade às suas existências. Não à-toa, para alguns pesquisadore(a)s, o pouco caso das políticas públicas em relação à EJA está nessa questão: tratar-se-ia, aos olhos de muitos, de uma modalidade que se volta aos mais pobres dos pobres, porque pobres econômica e culturalmente...daí, se pensar em uma modalidade que venha a atender a esses “pobres coitados”...uma educação compensatória.

A EJA em Natal é pobre porque sua capacidade de atendimento tem se revelado muito aquém da demanda. As matrículas em 2021, segundo a própria representante da Prefeitura de Natal, foram de 4 mil, enquanto, conforme os dados da PNAD Contínua do IBGE (2019), o número de natalenses com mais de 14 anos de idade sem instrução ou menos de 5 anos de estudo (ou seja, em grande parte, público da EJA) está em 88 mil!

Essa baixa capacidade de atendimento tem a ver com vários fatores (psicológicos, econômicos, sociais e, mesmo, pedagógicas), mas, antes de discuti-los, é preciso que reconheçamos que não há uma mobilização pública para acolher as pessoas que desejam começar ou retomar os estudos anteriormente interrompidos. Se há de fato um desejo de garantia do direito à educação para as pessoas jovens e adultas, por parte da SME, há de se fazer uma ampla mobilização e recenseamento público (previsto, aliás, na nossa legislação educacional e nunca realizada) de modo a identificar quem e quantos são aqueles e aquelas demandantes da EJA.

Chamar de mobilização, o envolvimento voluntário de professore(a)s e gestore(a)s de algumas escolas, em visitas de casa em casa, nos bairros ou espalhando mensagens por redes virtuais, não é mobilização. Colocar faixas defronte às escolas ou fazer circular carros de som uma vez por ano, não é mobilização. São ações voluntariosas, valorosas, mas de resultados limitados, porque desconexos e de caráter meramente animativo. Os sujeitos da EJA não precisam ser "animados" e sim encorajados de que seus projetos de autogestão da vida podem ser acolhidos pelas escolas.

Mobilização pública implica uma ampla articulação intersetorial que envolva os agentes públicos das escolas e fora dela. Implica adotar uma rotina, em todos os âmbitos da gestão pública, que possibilite que se saiba, bairro por bairro, quantas são as pessoas que não têm Ensino Fundamental Completo (ao invés de se esperar que o IBGE venha, a cada dez anos, fazer o Censo). É possível se fazer isso, integrando as informações colhidas por agentes de saúde e de gestão dos programas sociais ou de outros que envolvam jovens e adultos. Organizando as escolas para que, no momento das matrículas das crianças e adolescentes, se adicione na ficha de matrícula informações sobre o grau de escolaridade do restante da família. Disponibilizando na internet a lista das escolas onde estão sendo oferecidas as turmas de EJA. Estabelecendo a matrícula em fluxo contínuo. Essas e outras ações podem ser feitas, inclusive, buscando o apoio de Igrejas, outras instituições privadas e o poder público estadual (o qual também dispõe de unidades escolares).

Mas, é claro que aparecerão aqueles que dirão que dentro desse público potencial há aqueles que “não querem nada com o bozó” e que essas ações seriam desnecessárias. O típico argumento de quem raciocina segundo a ideia de que os fracassados são os responsáveis únicos pelos próprios fracassos. Uma tosca visão meritocrática já conhecida, que, em outros contextos, culpabiliza os próprios indivíduos negros pelo racismo que sofrem (e que lhes tolhem oportunidades), ou os indivíduos pobres pela pobreza em que vivem.

Uma vez, identificado(a)s e mapeado(a)s, aí, sim, preparar as escolas e os seus/suas profissionais para o acolhimento dessas pessoas, na diversidade de condições que vivenciam para a frequência às atividades escolares. Mas, aí, emerge a outra dimensão desse baixo atendimento: na rede pública municipal de Natal, praticamente só temos uma forma de atendimento. Mesmo assim, uma cópia do modelo como se organiza o chamado ensino regular, em turmas exclusivamente à noite.

É verdade que a Prefeitura oferece dois programas que atuam de uma forma diferente: o “Tecendo Saber” e o “Tecendo Caminhos”, organizados em formato de teleaulas. Porém, até onde sabemos, projetos pilotos existem para que sejam avaliados e, uma vez, aprovados, venham a se expandir. Esses dois programas, independentemente dos resultados alcançados continuam nessa condição, como pilotos solitários, planando em 3 das 23 unidades escolares que oferecem EJA na rede pública municipal, há pelo menos 10 anos.

A oferta de EJA em nossas escolas municipais é pensada em um formato fixo para pessoas cujas vidas são atravessadas por imprevisibilidades amplificadas dramaticamente nesses tempos de pandemia. A definição da quantidade de oferta de vagas parece ser feita não com base em um estudo de demandas, mas, simplesmente, considerando, para o período seguinte, o número da matrícula final do período anterior. De modo que o sistema opera não pela lógica da promoção do direito, mas do reconhecimento de sua própria falência em garantir o direito, já que desde 2007 a taxa de matrículas só tem caído.

E a despeito dessa realidade gritante, no Projeto de Plano Plurianual encaminhado ao Conselho Municipal de Educação e à Câmara Municipal de Natal, as pretensões da Prefeitura de oferta de EJA não ultrapassa a vergonhosa meta de 6 mil matrículas/ano, o que é simplesmente ridículo, porque, se considerarmos o fenômeno da intermitência, muito presente na EJA, isto é, pessoas que se matriculam e se afastam e, no ano seguinte, se matriculam novamente, então, fica difícil falarmos em ampliação do alcance e do acolhimento das pessoas.

Para nos encaminharmos às nossas observações finais, esperamos que a atividade realizada pelo Conselho Municipal de Educação não se torne apenas um momento puramente retórico, para consumo interno do próprio conselho e da gestão da SME, mas tenha desdobramentos efetivos, propiciando que se abra uma agenda de discussões que possam envolver, de fato, os múltiplos olhares e perspectivas presentes na EJA: estudantes, professore(a)s da rede e das instituições formadoras, além de quaisquer outros segmentos que queiram enfrentar, sem vacilos, o atendimento das necessidades educacionais dos cidadãos e cidadãs que têm mais de 15 anos e que pretendem retomar ou começar seus estudos.

Os caminhos desse atendimento são vários, possíveis e imbricáveis entre si: a articulação curricular com o mundo do trabalho, com produção artística e cultural local e com as demandas territoriais (dos bairros); a diversificação da oferta também em turnos diurnos e vespertinos; a promoção de uma verdadeira Chamada Pública e monitoramento de demanda; a construção de unidades exclusivas para o atendimento das pessoas jovens e adultas; a flexibilização curricular e de oferta; a matrícula permanente; a construção de uma formação continuada, articulada às vivências das unidades escolares e aos tempos de planejamento coletivo por unidade escolar.

Para dar cabo dessa tarefa, há de se buscar uma agenda ampla e construída intersetorialmente, envolvendo muito mais que apenas os gestores públicos municipais, em um trabalho que não trará resultados imediatos e rápidos, mas pode solidificar o que se chama de política pública para a educação de pessoas jovens e adultas em Natal.

Uma política que  se estruture a partir da ideia de que o acesso e a permanência na escola é um direito e não um favor aos que "demonstrarem força de vontade". Que considere os sujeitos da EJA não como aqueles que "não concluíram os estudos na idade apropriada" (porque não existe idades apropriadas e não apropriadas para se estudar), mas que querem retomar ou iniciar seus estudos a partir de um projeto de autogestão da vida. Sujeitos que estão imersos no mundo cercado(a)s das imprevisibilidades próprias de uma sociedade em que os direitos trabalhistas foram reduzidos ao mínimo; os patamares de pobreza aumentaram; e o horizonte de melhoria da qualidade de vida se estreitou.

Para sujeitos assim configurados em meio a imprevisibilidades (sem saber como será o dia de amanhã), o sistema deve buscar formas diversas de atendimento, que façam o acolhimento dessa imprevisibilidade em rotinas, espaços e tempos diversos e flexíveis e não na repetição do modelo de escola que é oferecido para crianças e adolescentes.

Encerramos, aqui, reforçando o que já está escrito no Abaixo Assinado entregue às instituições que velam pela educação de Natal. Com a pandemia fomos multiplamente desafiado(a)s. Professore(a)s redefiniram rotinas, reinventarem metodologias e colocarem suas residências, suas contas de energia e seus equipamentos para dar conta de situações para as quais nunca haviam sido formados. Gestore(a)s, também, foram obrigados a pensar soluções e estratégias complexas para o enfrentamento dessas situações. Mas, antes da pandemia, já sabíamos, que o aparentemente insuperável ou complexos pode e deve ser enfrentado não com ações isoladas e burocráticas, mas com o debate aberto e coletivo, envolvendo todos os segmentos implicados. Trata-se, portanto, de um mutirão, de caráter intersetorial, mas que tenha como princípio, antes de tudo, a garantia dos direitos dos cidadãos e não sua negação.

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