A EJA em crônicas e contos, parte 2
Publicamos, agora, um segundo conjunto de crônicas e contos produzidos por estudantes universitário(a)s como parte das atividades do componente Educação de Jovens e Adultos, do Curso de Pedagogia da UFRN.
Novamente, precisamos fazer os devidos esclarecimentos metodológicos, caso alguém não tenha lido a postagem anterior, como um primeiro conjunto de trabalhos literários (ver: https://ejaemmovimento.blogspot.com/2025/02/a-eja-em-cronicas-e-contos-parte-1.html).
Os contos e crônicas que publicamos a seguir são produções que se inspiraram nas narrativas de três sujeitos da EJA apresentadas no artigo "Evasão na EJA – histórias de abandono? Usos e táticas de praticantes na autogestão da vida" (acessível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=275029728076), de autoria de Inês Barbosa de Oliveira e Maria Clara da Gama Cabral Coutinho.
Nele, as autoras problematizam a ideia de "evasão escolar", considerando-a, como possibilidade de sua compreensão, como expressão de uma possível forma de uso da escola, mais do que como uma desistência ou abandono. Ou seja, apontam a hipótese de que os chamados "evadidos" podem recusar a continuidade à sua escolarização por uma escolha impregnada de outros interesses e constrangimentos que se sobrepõem ao desejo de frequentar a escola, valendo-se do direito que possuem de usar a escola a seu modo e a seu favor, sem o comprometimento de seu direito a uma vida digna e plena.
Além da leitura do artigo (e de outros das referências básicas do componente), o(a)s estudantes tiveram a oportunidade de visitar escolas que oferecem a modalidade EJA em Natal e entrevistar sujeitos estudantes dessas instituições. De modo que seus textos, dentro de um formato literário, refletem as questões discutidas em sala, das diversas camadas que perpassam os sujeitos da EJA e as visões que circulam socialmente em torno deles e da modalidade.
Novamente, agradecemos, imensamente, às turmas, pelo envolvimento, e as autoras do artigo, cujo conteúdo nos inspirou a desenvolver a atividade e inspirou a produção desses textos que começaremos a publicar. Aqui estão os três primeiros.
Alessandro Augusto de Azevêdo
Forçado pela circunstância
por ANA LETÍCIA DOS SANTOS MEDEIROS OLIVEIRA, CLEIZI GILDINA CRISTIANO SILVA, MARIA ANTÔNICA PEREIRA DA SILVA e MARIA REGINA COSTA MACÊDO
Eu morava vizinho àquela boca, todo mundo lá me conhecia, eu era o único de minha turma que ainda hesitava a adentrar no movimento, embora soubesse que muitos consideravam aquilo o meu destino. Vivia, dia após dia, caminhando pelas ruas da comunidade e pensando em maneiras de ganhar a vida. Tentei estudar, mas não, aquilo não era pra mim. Não conseguia entender qual o sentido de passar dias e dias sentado em uma cadeira buscando um objetivo inexistente!? O futuro que diziam estar me esperando se eu continuasse estudando me parecia tão distante quanto imaginário. Ao meu redor não via nenhum sinal de que haveria algum futuro à minha espera.Outro dia, enquanto descia o morro para ir vender minhas balas e ajudar minha mãe a pagar as contas de casa, encontro o Tonhão. Ele era meu vizinho de frente e todos os dias me observava indo e vindo do trabalho.
Nesse dia eu estava em uma decepção profunda, não havia feito nenhuma venda, e parece que ele percebeu meu descontentamento. Foi então que ele me parou e fez uma proposta inusitada, disse que sabia que eu era bom em fazer contas (certamente tinha que ser para não ter prejuízo nas vendas das balas da mãe, né?) e precisava de alguém com essas habilidades para ajudá-lo na boca que ele comandava. Disse não conseguir organizar as contas da boca. Tonhão, então, propôs que eu fosse o responsável pela contabilidade do tráfico da região. Eu argumentei que para esse serviço teria que ter um conhecimento de matemática mais avançado e tal, mas não teve jeito. Com seu olhar intimidante disse confiar em mim e, mais, que para garantir que eu fizesse o trabalho direito, eu deveria voltar à escola e estudar toda a matemática que fosse possível para que ele não tivesse mais problemas com a contabilidade de seu "empreendimento". Não acreditei no que estava ouvindo...Pensei: “Como pode? Voltar a escola para trabalhar na boca de fumo?” Mas, ali eu estava sem opções. Entre surpreso e indignado, tive de aceitar aquele destino. Calculei que não seria acertado contrariar Tonhão. Fatalmente eu poderia passar a ser visto como um inimigo do movimento. Algo que não recomendo a ninguém.
Depois de alguns dias, fiz minha matrícula em uma turma de EJA que funcionava na escola que havia, próxima da comunidade, e onde eu já conhecia alguns amigos e parentes que frequentavam.
Passei a ir às aulas todos os dias à noite, mas me concentrava mesmo era nas aulas de matemática, que aconteciam durante dois dias na semana, quando tinham as aulas de matemática. Confesso que não gostava do ambiente, não queria estar ali, era tudo muito entediante. Mas, afinal de contas, eu tinha um objetivo, mesmo que a contragosto.
Aos poucos fui me envolvendo nas aulas, e aprendendo as primeiras noções de porcentagem, fazer tabelas, resolver problemas com fórmulas e projetar lucros de vendas. Tentava pensar em como usaria esses conhecimentos para dar conta do serviço da contabilidade da boca e, sim, a matemática foi fazendo sentido pra mim.
Após um ano nessa rotina, decido sair da escola. Me sentia seguro para cuidar da contabilidade da boca do Tonhão. A hesitação que eu sentia já não mais existia. Sabia o que eu tinha que fazer e estava preparado...
Inclusive para sair do tráfico.
Tudo aquilo que fingem não ver
por BEATRIZ DA SILVA ROCHA, ELLIZA DE SOUSA FONSECA, JÚLIA LOPES MARQUES, SAMANTHA CAVALCANTI CONCENTINO e THALYA VICTÕRIA TAVARES XAVIER.
Essa espera de 40 minutos não é uma novidade. Novidade seria simplesmente não ter que esperar. O cansaço me toma.Todos os dias, o mesmo percurso pelas mesmas 2 horas, em meio a cochilos, empurrões e uma velocidade constante que me faz refletir o porquê de tudo ser assim.
E ainda tem gente que diz que “para estudar é só querer”. Mas, sempre respondo: “você é cego, ou finge que não vê?”.
Dizem que “todos têm as mesmas 24 horas”, porém, acordo antes mesmo do sol nascer, e trabalhando, nem vejo ele se pôr. Acho que a vida passa diante dos meus olhos e às vezes nem percebo.
Me pergunto o porquê da professora insistir que eu termine a escola, para só receber aquele papel? O único papel que me interessa é aquele que retiro no caixa eletrônico no fim do mês, em que leio a palavra “extrato”, com letras emaranhadas. Sei que é meu salário e é com esse dinheiro que pago minhas contas.
Sei que essas são minhas batalhas de todos os dias, mas paro e penso nos outros passageiros do ônibus que ali, com cara de cansados, também, de alguma forma, lutam para sobreviver. E assim me pergunto, quais são as batalhas deles e o que eles sofrem que os outros não conseguem ver?
A Transformação de um ideal
por JULIETA BEZERRA, MAGNUS ÁTILA, MONICK IZZI e RITA CÂMARA
Marinalva tinha um sonho: aprender a ler e escrever e ao conseguir realizar o que tanto almejava, percebeu que aprendera mais do que isso. Estar naquela sala de aula durante várias noites da semana, inicialmente parecia estar a serviço apenas do cumprimento de uma rotina que mais reproduzia que alterava a sua realidade. E ainda havia a rotina do trabalho e a dureza que era aguentar sua patroa e os seus abusos, não muito diferente de outras patroas para quem ela já havia trabalhado.Até que um dia, após chegar exausta e sem o menor ânimo para a aula, justificou, até um pouco envergonhada, à sua professora, os atrasos e ausências anteriores. Nesse dia, Rosa, era este o nome da sua professora, provocou-a: "Você já lê tão bem!? Porque não procura se informar sobre seus direitos como empregada doméstica? Ouvi falar que houve mudanças na lei que podem te beneficiar. Procura na internet, vai?"
No outro dia, a professora surpreendeu-a, trazendo um panfleto com várias explicações em torno da nova lei das empregadas domésticas, e provocando uma discussão em sala de aula em torno do tema.
Marinalva viu-se imersa em uma nova compreensão de sua situação como trabalhadora. Procurou o sindicato e obteve mais informações que lhe ajudo a repensar sobre a sua realidade, fazendo com que refletisse se as imposições de sua patroa realmente estavam de acordo com aquilo que aprendera com a sua professora, com o que tinha lido e ouvido, quando de sua ida ao sindicato.
Aos poucos, foi se dando conta de que, como qualquer pessoa, possuía direitos e, principalmente, que algumas das tarefas que realizava na casa da patroa, e as condições em que trabalhava, não estavam de acordo com o que sua professora lhe falara naquelas noites de aula e do que havia lido nos panfletos que lhes chegaram à mão.
Já era notável a mudança de atitude de Marinalva diante de algumas situações e sua patroa já percebia tudo isso, em peculiaridades em sua fala e nas suas respostas. Além disso, questionamentos sobre horário de trabalho fixo, fins de semanas livres, feriados, começaram a ser trazidos por Marinalva, de forma sutil, sempre como perguntas que mais pareciam assertividades…um incômodo inédito para ela.
E em um belo domingo de sol, pouco depois de já ter preparado o seu café da manhã, Marinalva, desavisadamente, reconhece o carro da patroa encostando de frente à sua casa. O motorista, aproxima-se da porta e avisa: "- Bom dia Marinalva! A patroa pediu pra vir te buscar, chegaram algumas visitas de surpresa e ela está precisando que você vá lá dar uma força para ela e depois se acerta contigo".
Marinalva logo pensou em todas as datas comemorativas e feriados que perdera para dar expediente extra nas casas de seus patrões. Tudo aquilo subiu à sua cabeça tal qual a água quente da cafeteira. E respondeu de imediato: "Diz para a patroa que não vou, tá? Hoje é domingo e, além disso, aniversário do meu filho. Não vou deixar de comemorar o nascimento dele pra ir trabalhar. Sem chance!". Enquanto o motorista tentava, afetuosamente, convencê-la de rever sua decisão, argumentando que evitasse confusão com a patroa, que até poderia - quem sabe? - ganhar um dinheirinho a mais, Marinalva mostrava-se irredutível, movida por um sentimento que ela já não tinha mais controle. "Agora eu conheço os meus direitos e deveres". "Diz a ela que estarei, normalmente, na residência dela, amanhã, tá?" E fechou a conversa, falando para o motorista o que - sabia - em algum momento seria dito à patroa: "ninguém mais me engana. Aquela mulher já não comanda mais minha vida".
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