Chamada Pública na EJA (ou como esperar a vinda de quem não é chamado ou bem-vindo?)

Por Alessandro Augusto de Azevêdo, professor do Centro de Educação/UFRN

Estes primeiros dias de fevereiro marcam o início do período letivo nas escolas das redes de educação básica. Mais à frente, as secretarias de educação informarão ao Censo Escolar um número menor de matrículas e turmas formadas na EJA. Desejaria que fosse o contrário, mas não aparecem indicações que animem outra possibilidade.

Desde 2015, as matrículas e o número de turmas na EJA, no Brasil, têm caído. No Rio Grande do Norte, os dados do Censo Escolar mostram que comparando os números de matrículas na EJA - Ensino Fundamental, de 2015 com os dados de 2020, nas redes públicas municipais, o número de matrículas teve queda de 12,47%. Na rede estadual a redução foi de 34,65%. Com a palavra, a SUEJA/SEEC-RN.

A lógica predominante na gestão da modalidade se estrutura mais ou menos assim: cada escola faz um levantamento dos que conseguiram concluir a etapa, fase, série ou ano anterior e se projeta quantas turmas será possível formar a partir desse número. A instância imediatamente superior analisa a proposta enviada pela escola, considerando se o número de pré-matrículas possibilita a escalação de profissionais para atender à demanda apresentada e responde se a proposta de formação de turmas será efetivada. Uma vez considerada a proposta pertinente, organiza-se o quadro docente que trabalhará na EJA, tendo como critério básico aquele(a)s profissionais que eventualmente precisem complementar suas cargas horárias mínimas.

O sistema, assim se organiza e fica aguardando que os sujeitos venham ao encontro da escola, naturalizando a falsa ideia de que a escola está cumprindo com sua função e obrigação sociais, pois está ali à disposição e à espera dos jovens e adultos que queiram se escolarizar e que se ele(a)s não a procuram é porque não têm disposição, desejo ou ambição para sorver dos benefícios que a escolarização proporcionaria.

Essa lógica se repete como uma máquina de moer. Primeiro, ela mói o mito da “educação para todos”, pois placidamente se nega a garantir o direito à educação àquelas pessoas cujas condições de vida precarizadas estão na base das suas dificuldades em estabelecerem relações contínuas e permanentes com os processos escolares. Afinal, suas vidas imprevisíveis não cabem nas lógicas previsíveis das escolas. Estas esperam (e se organizam para) um sujeito (imaginário) que frequentará as aulas todos os dias, cumprirá as atividades a serem realizadas “em casa” e que deve se esforçar para “recuperar o tempo perdido”. Todos aqueles que não cumprirem com essas expectativas serão condenados à condição de repetentes, evadidos e outras nomenclaturas similares.

E aqui temos o segundo efeito dessa máquina de moer, que é o de promover a hipócrita autorresponsabilização dos sujeitos pelas marcas negativas que ele traz de trajetórias produzidas no contexto de profundas desigualdades econômicas e de vivências atravessadas por camadas de exclusão ao acesso de bens materiais e simbólicos, talhada como projeto civilizatório.

Trata-se de sujeitos que carregam trajetórias humanas e escolares atravessadas pelas desigualdades sociais e o estigma de estarem “fora de faixa”, de serem ou estarem “atrasados”, de “não terem conseguido avançar” - adjetivos produzidos pelo discurso pedagógico que lhes atribuem uma condição inferior ou marginal, em relação ao público e à organização da escola chamada de “Regular”.

Diante de subjetividades tão fortemente marcadas pela negatividade, não pode ser razoável que as instituições escolares - comprometidas com a noção de direito - fiquem em berço esplêndido à espera que os sujeitos espontaneamente a procurem. Pelo contrário, o reconhecimento dessas trajetórias humanas e do histórico esquecimento das instituições para com esses sujeitos, deveria resultar em uma mobilização social de sensibilização e convite ao retorno às escolas.

A legislação educacional vigente acena para que haja essa mobilização no contexto da EJA. Desde a Constituição Federal, passando pela LDB e Diretrizes Curriculares Nacionais para a EJA (2000), encontramos as indicações de que a educação deve ser garantida para todos e todas e que as estruturas oficiais devem fazer chamada pública e busca ativa (como se faz com crianças e adolescentes) para a matrícula. Porém nem o governo estadual (mesmo tendo a grife de governo popular) nem os governos municipais têm políticas para operar essa Chamada Pública.

E o que encontramos quanto a isso? Uma ou outra faixa estampada na fachada de uma ou outra escola e cards divulgados sempre no início do ano, em grupos de whatsapp, por iniciativa exclusiva das direções das escolas. Alguns poucos profissionais, mais comprometido(a)s, ousadamente organizam idas às casas daqueles estudantes que abandonaram os estudos. Providenciam carros ou bicicletas com equipamentos de som, circulando nos arredores dos bairros, avisando que as matrículas estão abertas. Por vezes recorrem a lideranças religiosas para que elas divulguem que a escola pretende formar turmas na EJA. Ou seja, trata-se não de uma política, mas de iniciativas isoladas e episódicas. Sem falar que, muitas vezes, tais movimentos ocorrem como reações do coletivo de professore(a)s ante algum anúncio de fechamento das turmas de EJA e das consequências em termos de prejuízo quanto a organização de suas respectivas vidas profissionais naquele momento.

Fazer uma mobilização nesse sentido não é fácil e a obtenção de resultados positivos imediatos não é garantido. Mas o fato é que se qualquer cidadã(o)  acessar a página da SEEC/RN ou de qualquer secretaria municipal de educação não saberá onde se matricular porque não encontrará lista das escolas que oferecem EJA. Não verá qualquer mensagem convidando-o a se matricular e orientando como fazê-lo e quais as alternativas de atendimento que dispõe.

A EJA é invisibilizada e seus sujeitos igualmente e essa invisibilidade (sobre o que já tratamos em outro momento: http://ejaemmovimento.blogspot.com/2023/01/eja-por-uma-politica-educacional.html), tem como desdobramento a desresponsabilização (ou, no melhor das hipóteses, a leniência) de gestore(a)s públicos em efetivar mecanismos e processos que viabilizem e garantam o direito à educação para esses sujeitos acima de 15 anos que buscam iniciar ou retomar os estudos interrompidos.

Considerando as especificidades desses sujeitos e da modalidade, a Chamada Pública relativa à EJA deve ser tratada como efetiva mobilização social, com:

(a) campanha midiática, com movimento de pautação da imprensa e produção de vídeos e áudios de lideranças políticas, religiosas, de movimentos sociais locais, chamando as pessoas para a escola; 

(b) organização e planejamento de iniciativas de abordagem direta, envolvendo os coletivos de profissionais das escolas, antes do início das atividades escolares;

(c) disponibilização pública prévia das escolas que oferecerão a modalidade na internet; e

(d) política de levantamento sistemático da demanda potencial da EJA, envolvendo todas as escolas das redes de educação básica, articulações intersetoriais e entre os entes federativos, junto com organizações da sociedade civil; e

(e) política de incentivos financeiros a iniciativas de escolas que visem ampliação das matrículas na modalidade e viabilizem projetos voltados à permanência dos sujeitos.

O fato da atual governadora do estado estar assumindo um segundo mandato propicia que essas questões sejam pensadas e levadas a termo a fim de que haja uma reparação quanto à forma leniente com que a EJA foi tratada em seu primeiro mandato. Também, a oportunidade de termos eleições municipais no próximo ano, implica os profissionais identificados com a modalidade, em pautarem essas questões em seus respectivos municípios.

No plano concreto, trata-se de uma construção ampla e complexa, que poderia ser pautada a partir de um projeto de lei que aponte estímulos, estratégias e mecanismos que assegurem uma Chamada Pública e um processo de identificação de demandas na EJA, capaz de dar suporte à superação dos índices vergonhosos que temos quanto ao número de pessoas com mais de 18 anos que não concluíram a educação básica.

Contudo, não nos enganemos, por mais exitosa que fosse uma mobilização que resultasse na ampliação das matrículas na EJA, ainda teríamos que equacionar uma outra problemática: o modelo pedagógico hegemônico em nossas instituições escolares (pautadas pela reprodução do modelo canonizado na escola que se oferece para crianças e adolescentes).

Sem falar que há escolas que fecham os portões às 19h15min ou 19h30min e se o sujeito chegar atrasado terá que esperar o horário do intervalo. Ou negociar pessoalmente com o porteiro ou o(a) diretor(a) da escola. Há mulheres que, obrigadas a ir à escola com suas crianças, são, por vezes, convidadas a voltarem somente quando encontrarem um lugar ou alguém que possa cuidar do(a)s filho(a)s. E há, ainda, aquelas situações em que os sujeitos perdem um ou dois dias de aula por razões extemporâneas e percebem que não haverá como “recuperar o conteúdo perdido”, porque há uma sequência didática que, como um trem ligeiro, não pode parar, nem esperar pelos retardatários. Situações que refletem uma forma de se pensar e se organizar a EJA que precisa ser enfrentada.

Mas, isso tudo já é tema para outra conversa…quem sabe a próxima…

Comentários

  1. Lendo seu texto vejo uma realidade vivida a tão pouco tempo na escola que trabalho.
    Suas reflexões são pertinentes e mais do que isso, reais.
    Todos os dias em alguma escola de algum lugar nesse país essa realidade se repete.

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