A EJA no Currículo Potiguar: qual a política curricular para a EJA?

Por Alessandro Augusto de Azevêdo

Desde o último 29 de abril, encontra-se aberto, no sítio da SEEC/RN, processo de consulta pública em torno do REFERENCIAL CURRICULAR PARA O ENSINO MÉDIO POTIGUAR, um documento elaborado pela Equipe de Currículo da Secretaria de Estado da Educação, da Cultura, do Esporte e do Lazer do Rio Grande do Norte, com o objetivo de dotar a rede pública estadual daquilo que está previsto no Art. 26 da LDB, no qual se indica que os currículos dos níveis de ensino da educação básica devem ser compostos pela Base Nacional Comum e uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e do(a)s educando(a)s.

Trata-se, portanto de um documento cujas orientações curriculares se situam na busca de dar conta do que seriam os aspectos regionais próprios à identidade do Estado Potiguar, considerada a sua diversidade.

A iniciativa da SEEC/RN enseja uma ampla teia de questões. Refiro-me à “teia” porque, de fato, se não percebermos o conjunto de questões que estão presentes na iniciativa de se propor um documento de referência curricular, nos perderemos na tarefa burocrática de apenas discutirmos os termos de um documento a ser formalizado em alguma instância. E se pensarmos nas especificidades da EJA, essas questões se tornam mais problemáticas.

Entre essas questões, algumas não serão possíveis de serem discutidas aqui, mas gostaríamos apenas de apontá-las (até para, quem sabe, fazermos esse debate em outro momento):

(a)    o açodamento da discussão, que se revela no pouco tempo da consulta pública (de pouco mais de quinze dias);

(b)    a não articulação formal e orgânica com as instituições de ensino superior, que são os espaços de formação docente e, portanto, parte integrante da construção de qualquer processo que implique a configuração de currículos nas redes de educação básica;

(c)    o quanto o documento reflete (ou não) em seu conteúdo experiências de práticas curriculares consideradas exitosas no contexto das nossas escolas públicas;

(d)    o quanto o documento reproduz, em sua estrutura, os marcos do paradigma da BNCC e da última reforma do ensino médio, quando poderia apostar em uma perspectiva menos estandartizada e mais original;

(e)    a ausência de uma programação e uma sistemática que apresente aos sujeitos participantes os desdobramentos do processo de consulta.

Neste espaço, gostaríamos de tratar da presença da modalidade EJA nesse processo, isto é, não estamos nos referindo à sua “presença” no documento, dado que quem se der ao trabalho de lê-lo encontrará uma menção genérica que consume pouco mais de duas páginas. Ou seja, a EJA, aparentemente, compõe o documento de uma forma protocolar, dado que por lei trata-se de uma modalidade que atravessa o Ensino Médio, tal como aconteceu com a BNCC. Temos, assim, mais uma invisibilização da modalidade, o que nos faz pensar sobre se isso é intencional ou reflexo da falta de uma política concreta para a EJA.

Aliás, a estrutura do documento, pensada com uso de terminologias e formatos presentes na BNCC é temerária, dado que suas últimas versões (e especialmente aquela que se articula com a Lei do Ensino Médio aprovada após o Golpe contra a Presidenta Dilma Roussef) têm se alinhado a visões mercantilistas e perspectivas pedagógicas que, para dizer o mínimo, são condescendentes com as lógicas meritocráticas e competitivas.

Antes de entrarmos na questão que nos interessa, devemos deixar claro nosso posicionamento de que, em acordo com as Diretrizes Nacionais Curriculares para a EJA (consolidada nas resoluções já citadas e no circuito acadêmico e dos movimentos em defesa da educação para pessoas jovens e adultas), entendemos que a EJA, como modalidade que é, deve ser pensada a partir da perspectiva de um modelo pedagógico próprio. Ou seja, o debate em torno de um currículo no contexto da EJA não se orienta no sentido de sua “adaptação” (ou “adequação”) a princípios ou orientações consideradas “universais” (leia-se, aquelas que se aplicam à educação para crianças e adolescentes), mas a partir do reconhecimento das especificidades dos sujeitos que demandam a modalidade e suas necessidades e expectativas de aprendizagem.

A presença tão tímida pode ser vista como expressão da ausência de uma clareza sobre uma política curricular para a EJA no âmbito do Ensino Médio; ou em razão de, na verdade, existir uma estratégia pensada e presente somente (ainda) no círculo de gestores da SEEC no sentido de se construir uma proposta de organização curricular própria para a EJA.

No minúsculo lugar dedicado à EJA no documento do currículo potiguar para o Ensino Médio, lemos indicações o suficientemente genéricas para agradar a qualquer leitura superficial, ao mesmo tempo em que escondem o que aparenta ser a ausência de uma política para a modalidade, mesmo que apenas no âmbito do nível (Ensino Médio) a que se propõe o documento.

De início, o documento afirma que o sistema estadual se ancora nas Diretrizes Nacionais Curriculares da EJA, apontando apenas uma Resolução do Conselho Nacional de Educação (a n. 1/2000), não mencionando, estranhamente, a Resolução n. 3/2010 (que a complementa) e mesmo a Resolução n. 4/2012, do Conselho Estadual de Educação.

No corpo do documento, aponta-se que o sistema estadual assegura o direito à conclusão da educação básica aos sujeitos de direito, mediante formas diversificadas de atendimento, dado que as características de vida e de trabalho das pessoas que acorrem à modalidade exigem do poder público o atendimento educacional diversificado, ofertado em espaços escolares e em espaços não escolares. Porém, as atuais formas de atendimento (inclusive de mobilização à matrícula e estrutura curricular) não parecem surtir efeitos, a não ser o decréscimo da matrícula – fenômeno que embora seja nacional, não encontra em nosso Estado, políticas claras que o estanque.

O documento indica, ainda, a importância de as práticas curriculares considerarem as características e peculiaridades da vivência dos estudantes da EJA, buscando estratégias diversificadas capazes de articular os seus interesses com os objetos do conhecimento, no sentido de suas ressignificações e sua articulação à educação profissional. Aqui, vale o registro que o documento se remete à noção de empreendedorismo, sem associá-lo a valores como a solidariedade e o cooperativismo, reforçando, assim, a visão idílica (e perversa) que vangloria o individualismo e a sujeição aos mecanismos do mercado capitalista.

Por fim, o documento, nessa perspectiva de reconhecimento da diversidade dos sujeitos, da heterogeneidade de suas necessidades de aprendizagem, suas motivações e condições de estudo, reforça sua associação à concepção e estruturação de uma EJA diversificada e flexível, acolhedora de percursos e ritmos formativos bem diversos. Ainda aponta que a fim de que haja uma efetiva incorporação da diversidade seria necessária inovação pedagógica, seleção criteriosa dos objetos de conhecimento em harmonia com o universo sociocultural dos sujeitos, com o uso de linguagem apropriada, de recursos e espaços específicos destinados a essa modalidade.

Embora reconheça a diversidade de sujeitos e a necessidade de formas diversificadas de atendimento – o que é positivo – o documento não apresenta com detalhamento essas formas, muito menos os seus desdobramentos, em termos de política curricular. Ou seja, o reconhecimento da diversidade de atendimento e de público, aparentemente, não resulta em reconhecimento da implementação de propostas e práticas curriculares diversas, o que pode sugerir que a modalidade comportaria uma única proposta curricular, a despeito dessas diversidades. Uma visão ainda atravessada por certa estandartização do currículo, numa modalidade em que práticas estandartizadas se mostram ineficazes e ineficientes.

 A questão que se impõe, portanto, é qual a política curricular para a EJA que está sendo pensada pela SEEC/RN e, mais do que isso, qual a política mais ampla a essa modalidade. O silêncio a essas questões, presente no documento em tela, é indicativo, também do silêncio da gestão estadual da EJA. Silêncio, inércia ou falta de clareza quanto às implicações que o desencadear de um processo de reorganização curricular produz na conformação da modalidade.

Seja o que for a EJA em nosso Estado está diante de monumentais desafios que precisam ser enfrentados de frente e de uma forma global, num processo que deve envolver o esforço em articular entes municipais e DIRED; as instituições formadoras; e coletivos de professores e professoras nas escolas. São desafios que já se mostravam enormes anteriormente à pandemia do COVID-19 e que se amplificaram com ela, não apenas no cenário atual, mas se vislumbrarmos os seus efeitos na vida dos cidadãos e cidadãs que demandam a EJA.

Para os enfrentarmos, demanda que:

(a)    agreguemos os múltiplos sujeitos (de dentro e de fora da SEEC/RN) em instâncias de planejamento e efetivação de um amplo processo de reorganização curricular da modalidade EJA;

(b)    criemos redes, momentos e processos de reflexão sobre as práticas curriculares que apontam para a construção de um modelo pedagógico próprio para a EJA, como processo simultâneo de formação docente e construção de consensos pedagógicos;

(c)    estabeleçamos rotinas e iniciativas que possibilitem o permanente alinhamento das propostas curriculares, não com o que preconiza a BNCC, mas as expectativas e necessidades de aprendizagem dos cidadãos e cidadãs que procuram a modalidade;

(d)    desenvolvamos uma efetiva chamada pública para a EJA, articulada e pactuada entre o ente estadual e os entes municipais; e

(e)    consensuemos um amplo sistema de garantia de escolarização aos sujeitos demandantes da EJA, em formatos que considerem a flexibilização de tempos, o reconhecimento dos seus saberes e o acesso – em formato híbrido – às atividades pedagógicas propostas.

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