A EJA em crônicas e contos, parte 1
ESCLARECIMENTO METODOLÓGICO
Os contos e crônicas que publicamos a seguir são produções realizadas por estudantes matriculados no componente Educação de Jovens e Adultos, obrigatório no Currículo da Licenciatura de Pedagogia e Opcional nas demais licenciaturas, no último semestre 2024.2.
Como fonte para a confecção das crônicas e contos, foi indicada leitura do artigo "Evasão na EJA – histórias de abandono? Usos e táticas de praticantes na autogestão da vida" (acessível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=275029728076), de autoria de Inês Barbosa de Oliveira e Maria Clara da Gama Cabral Coutinho, no qual, as autoras partem de narrativas de três sujeitos da EJA para discutirem e problematizarem a ideia de "evasão escolar", considerando-a, como possibilidade de sua compreensão, como expressão de uma possível forma de uso da escola, mais do que como uma desistência ou abandono.
As autoras trabalham com a hipótese de que os chamados "evadidos" podem recusar a continuidade à sua escolarização por uma escolha impregnada de outros interesses e constrangimentos que se sobrepõem ao desejo de frequentar a escola, valendo-se do direito que possuem de usar a escola a seu modo e a seu favor, sem o comprometimento de seu direito a uma vida digna e plena.
Além da leitura do artigo (e de outros das referências básicas do componente), o(a)s estudantes tiveram a oportunidade de visitar escolas que oferecem a modalidade EJA em Natal e entrevistar sujeitos estudantes dessas instituições.
A proposta, portanto, implicava buscar elementos das histórias dos sujeitos, apresentadas pelas autoras do artigo, para projetá-los em um exercício literário, no campo ficcional. Como resultado, teríamos contos e crônicas para publicação neste blog, o que fazemos agora, após leitura e revisão dos textos produzidos.
São textos escritos por estudantes universitários, muitos dos quais nunca haviam escrito ou pouco escreveram no formato proposto, e que somente no contato com o componente Educação de Jovens e Adultos tiveram a oportunidade de refletirem sobre essa modalidade e seus sujeitos. De modo que a leitura dessas produções trazem visões múltiplas, de camadas diversas, de questões que perpassam os sujeitos da EJA e as visões que circulam socialmente em torno deles e da modalidade.
Por fim, agradecemos, imensamente, às turmas, pelo envolvimento, e as autoras do artigo, cujo conteúdo nos inspirou a desenvolver a atividade e inspirou a produção desses textos que começaremos a publicar. Aqui estão os três primeiros.
Alessandro Augusto de Azevêdo
1. O Orgulho de Aprender
por ANA CLARICE HOLANDA DA SILVA e THALITA LETÍCIA MORAIS DA SILVA
Na cidade de Esperança, vivia Ana, 38 anos, faxineira de uma grande escola particular. Embora muito dedicada ao trabalho, Ana sentia-se invisível naquele cotidiano escolar, transitando entre alunos e professores. Talvez porque - pensava - sua vida se restringia à tarefa fundamental, mas pouco valorizada, de limpar as sujeiras do lugar.Esse sentimento, aliás, havia a motivado a entrar em uma turma de alfabetização aberta lá na comunidade onde morava, pela professora Rita, que havia visitado sua casa pessoalmente, convidando-a a participar da turma.
Naqueles encontros, Ana descobriu-se fascinada pelas letras, pela mágica de poder entender aquele ajuntamento de símbolos antes confusos. Rita, com sua gentileza e paixão em ensinar cada pessoa de sua turma, incentivava todos a lerem um pouco todos os dias. Lerem qualquer coisa. Observarem como as letras apareciam nas suas vidas e em que circunstâncias a necessidade de leitura se impunha.
Inspirada, Ana pediu à diretora autorização para levar para casa, no final do seu expediente, o jornal, costumeiramente deixado sobre a mesa da diretora da escola, e que antes ela apenas folheava sem entender, entre uma e outra arrumação da sala da direção. Agora, não. Após seis meses na turma de alfabetização, cada palavra parecia brilhar diante de seus olhos, mesmo aquelas que ela não entendia o significado, mas que estava ali sendo lida porque ela já conseguia juntar as letras com a mesma perfeição com que arrumava e limpava as salas da escola. Conseguia vocalizar as palavras com a mesma tranquilidade com que cantava as músicas de sua predileção, enquanto pilotava a vassoura e os panos de chão. E quando lia em voz alta, as palavras ganhavam a leveza das partículas de poeira que ela via escapar dos móveis, após espanados.
Certa vez, enquanto preparava o café para os professores, Ana ouviu a conversa deles sobre seus próprios salários. Para sua surpresa, descobriu que ganhava quase o mesmo que a sua professora Rita. Essa revelação a fez refletir sobre seu trabalho e da professora. Sua vergonha de ser faxineira, dava lugar, agora, a um sentimento ambíguo: orgulho por ter um salário quase do mesmo valor de sua professora, mas, também, uma inquietante sensação do quanto a profissão de Rita era desvalorizada, o que explicava porque quase todo ano estourassem greves de professores e as aulas da alfabetização, na comunidade, fossem interrompidas, às vezes, por meses.
Ana queria aprender a ler e, com esforço, conseguiu. Largou a turma de alfabetização, da escola da comunidade, sabendo decifrar as palavras, mas, também discutindo as notícias do dia com seus colegas. Ficou tentada, quando a professora Rita sugeriu que ela continuasse estudando, para concluir o Ensino Fundamental, porém, sua rotina não era fácil. “Não tenho horário pra nada”, costumava dizer. Quando a diretora da escola a chamava, mesmo que fosse domingo, Ana não tinha escolha. Às vezes, a diretora enviava um carro para buscá-la na comunidade, sem se preocupar se ela poderia ou não. Era um ciclo que parecia não ter fim. Mas, pensava ela, teria um fim, sim, porque naqueles mesmos jornais largados na sala da diretora ela lia sobre notícias de pessoas como ela, que buscavam seus direitos e os conseguia.
De modo que Ana decidiu que já havia alcançado seu objetivo. O diploma não era o que importava. O que realmente contava era a habilidade de ler e interpretar o mundo ao seu redor. Sua escolha de sair da escola antes do esperado, embora gerasse questionamentos - a começar da própria professora Rita, tão apaixonada pelas capacidades desenvolvidas por Ana - era resultado, também, de uma leitura: não a das letras, mas do mundo que a cercava. Sua rotina de trabalho dificilmente permitiria que ela desse conta da rotina inflexível do sistema escolar. Ela sabia que o conhecimento que ela havia adquirido era mais valioso do que qualquer papel oficial. A escola e os momentos com a professora Rita haviam cumprido uma função importantíssima. Uma oportunidade que Ana agarrou para reescrever sua história, e reler o mundo, para além de um mero cumprimento de etapas.
Assim, Ana se despediu da escola com um sorriso no rosto e um novo olhar sobre sua vida. O que lhe importava não era o reconhecimento formal, mas a valorização de sua trajetória e o poder que o aprendizado lhe proporcionou. A busca pelo conhecimento, para ela, era uma jornada contínua, e a escola tinha sido apenas um dos muitos passos nesse caminho.
E assim, Ana, a faxineira, passou a se ver como uma mulher que não apenas limpava salas de aula, mas que poderia buscar seus direitos, novas conquistas. O orgulho de aprender e a certeza de que seu trabalho tinha valor a acompanhariam para sempre.
2. Seu Diniz e o Ritmo da Vida
por DENISE ANGÉLICA, MARIA DANIELLE OLIVEIRA e TAINÁ BALBINO ROCHA
O relógio é pontual. Certas coisas da vida também. O percurso regular dos ponteiros do relógio pendurado na parede, os barulhos da cidade, o ir e vir das pessoas do prédio.Com tantos anos vividos, a idade para Seu Diniz é apenas um número: 60. No seu rosto estão as marcas do tempo - rugas que falam de muitos dias de sol e chuva, de risos e, também, algumas tristezas. A vida pregou peças. E ainda prega! Que coisa!
Trabalha como porteiro num prédio antigo, cujos moradores, com suas vidas agitadas, raramente notam sua presença...a não ser aquelas pessoas com quem ele passou a ter uma relação mais próxima desde o momento em que assumiu um bico que surgiu quase por acaso, para completar sua renda e ocupar alguns horários vagos de sua jornada diária de trabalho, mas que tomou um espaço importante em sua rotina: motorista de transporte escolar dos filhos dos moradores do prédio.
Naquele dia, como tantos outros, Seu Diniz termina o expediente de porteiro e logo entra no seu carro, uma van que já viveu muitas histórias, comprada de segunda mão, de um velho amigo que largava o volante.
Seu Diniz, então, se despede do Jair, que o substituirá na guarita, entra no carro, roda a chave para ligá-lo, ajusta os espelhos e parte em direção à escola das crianças. Ao chegar lá, encontra-as à sua espera.
Para ele, aquele trajeto é mais do que uma simples rotina e cada uma daquelas crianças têm um significado especial. Enquanto dirige, por vezes, se perde nas memórias de quando, com a idade da maioria delas, caminhava pelo meio do mato, não para ir à escola, mas para acompanhar seu pai e sua mãe na roça. Viveu isso até os 16 anos, quando decidiu se aventurar na cidade e pulou de trabalho em trabalho, sem conseguir que houvesse coincidência entre o trabalho e a escola. Tempos em que a escola continuava distante, mesmo que perto de casa. Mesmo que ele se matriculasse todos os anos e tentasse frequentar com alguma regularidade.
Durante a viagem trazendo as crianças de retorno às suas casas, ele ouve atentamente as histórias que os pequenos lhe contam. Alguns falam dos trejeitos das professoras, de situações engraçadas com os colegas de sala e das provas que estavam super difíceis.
Conversas que, para ele, são como pequenos momentos de poesia no seu cotidiano. Elas vão e vêm, sem pressa, sem complicação. Quando ele deixa os filhos de volta no prédio, um por um, com um simples "até amanhã", Diniz sente uma satisfação silenciosa.
Ao deixar as crianças e cruzar semáforos, as ruas das memórias de Seu Diniz são ocupadas por lembranças mais recentes, de quando decidiu, há poucos meses, retornar à escola para aprender a ler e a escrever por um único propósito: renovar a sua Carteira de Habilitação e, assim, se manter no trabalho de transporte escolar.
Tic-tac, tic-tac, tic-tac…E assim, o tempo vai passando. As crianças crescem, o prédio envelhece, mas Diniz, com seu jeitinho calmo e acolhedor, vai se mantendo firme diante das circunstâncias. Ele sabe que o verdadeiro valor está nas coisas simples e nas conexões que, às vezes, não pedem mais do que um simples "até amanhã".
3. Quando meu guri aprendeu a lidar com os números
por DIEGO MAX BEZERRA DA CÂMARA, JEFERSON LUÍS PIRES ROCHA, JOSÉ ÍCARO PAULA BEZERRA, VICTOR ENZO FONTES CÂMARA e WELLTON DE SOUZA BEZERRA
Na minha família a gente nunca foi das letra nem dos número. Pra escola eu só cheguei a ir até a 3ª série porque minha irmã, Maria, me pegava pelo braço todo dia logo cedo. Lá em casa faltava de tudo. A fome era grande e a gente tinha que sair, ainda no escuro da madrugada, para ajudar meus pais na roça. E já fui emendando logo, trabalhando em casas de madame.Mesmo sem saber muito de ler, meu sonho era que meu Felipe fosse estudado, porque eu vejo que os filho das madame têm uma vida boa porque estudam, têm formação e porque meus patrão e a patroa tudo estudaram também. Não tem futuro quem não estuda...
Mas Felipe não gostava muito de escola. Era uma luta tirar ele da cama, cedinho, e ainda tinha dia que não tinha aula por causa de tiroteio ou porque faltava professor...e eu acabava levando ele comigo pro trabalho e escondendo ele debaixo da mesa da cozinha para não incomodar, porque a madame não queria ninguém da favela na casa dela. Nessa luta toda, Felipe cresceu e eu não consegui mais esconder ele. Tive que deixar em casa e foi batata: dizia que ia pra aula mas eu sabia que tava com esse povo errado aqui da comunidade, uma tristeza que cortava meu coração. E assim ele foi se atrasando na escola.
Dia desses, chegou em casa com uma novidade que me deixou com uma felicidade que não cabia em mim: disse que ia voltar pra escola de noite, uma tal de EJA, que assim arranjaria um trabalho e que um dia, chegava lá! Minha felicidade saltou pela garganta e dei um grito tão grande que os vizinhos vieram saber o que tinha acontecido.
Compramos caderno e caneta e toda noite meus olhos ficavam cheio de lágrimas quando via ele saindo pelo beco pras aulas. Ficava tão orgulhosa quando ele voltava e queria me ensinar o que tava estudando. Ele se empolgava todo. E ele era bom na matemática! Mostrava os números das contas de água e luz e ainda disse que ia ver como fazer pra baixar o valor do carnê que fiz pra comprar a geladeira nova.
E ainda disse mais: “mãe, com esse estudo, vou comprar tudo novinho pra senhora aqui em casa”. E eu: Ave Maria! Um orgulho esse meu menino, vai ser um professor, pode apostar!
Mas, algo me dizia que essa felicidade não ia durar muito tempo… tava sentindo...coração de mãe não erra, né?
Uns oito meses depois, Felipe começou a deixar de ir à escola. Disse que já tava sabendo de tudo. Eu até falei pra ele terminar os estudos, pegar o diploma, que a vida ia melhorar, mas ele me respondia na lata, dizendo que a vida já tava melhorada e me deu logo um cordão de ouro pra provar.
Não deu outra: só fez passar o Natal e ele me entregou o caderno de volta, dizendo que tinha acabado pra ele. Meu coração se quebrou em mil pedaços que tô juntando até hoje. E não parou por aí.
Já tava na véspera de ano. Ele chegou, eu já tava cochilando vendo a última novela esperando só os fogos que os grandões do morro soltam quando quebra o ano. Felipe chegou com um sorriso brilhoso e uma bolsa de marca, disse que era pra me mimar. Aproveitei e perguntei, “meu filho, como pode você ter deixado os estudos e voltar pra boca?”.
Talvez seria mais feliz se não tivesse feito essa pergunta, porque a resposta do guri ainda me come de tristeza toda vez que lembro: “Ah, minha véia, voltei a estudar por causa do dono da boca… ele queria que eu cuidasse das contas do movimento. E as coisas melhoraram, né não? Eu não disse que a gente ia melhorar de vida?”
Excelente
ResponderExcluirExcelente trabalho!!!! Parabéns aos autores e autoras. Obrigado pela partilha!!!
ResponderExcluirBom.dia, adorei conhecer este trabalho , vou compartilhar com minha equipe da EJA e educandos .
ResponderExcluir