A EJA em Contos e Crônicas, Parte Final
Encerramos, com esta postagem, a série de contos e crônicas produzidas pela turma do componente EJA que ministramos no semestre passado, no Curso de Pedagogia da UFRN. Os outros contos e crônicas podem ser lidos em postagens anteriores que estão neste blog.
Agradeço imensamente a toda a turma que acolheu a proposta e se empenhou em escrever todo este material com alegria e compromisso.
Um forte abraço a todas.
NUVEM PRETA DE FUMAÇA
Por Ana Clara Costa e Silva, Anne Letícia de Oliveira Costa e Cecília Moura Ramos
E essa semana parecia mais importante, parecia sentir que algo diferente estava por vir, seus olhos não saiam da folha daquele jornal. Alguma coisa acontecia debaixo do nariz de Dona Nalva, seus olhos já não viam apenas letras sem sentido, aos poucos aquilo que lhe parecia impossível, tornava-se realidade; de letra em letra e sílaba em sílaba foi-se tomando consciência e leu: “PEC das domésticas: fim da distinção entre trabalhadores”, com o desenho entendeu o que queriam lhe dizer. Marinalva deu um riso singular, não sabia ao certo o que significava: se era graça ou alívio, mas tinha certeza que era orgulho, pensou em contar pra alguém e se perguntou quem seria o primeiro a saber: agora eu consigo ler.
Uma lembrança do passado surge em sua mente. Estava novamente na casa de sua mãe pedindo ajuda numa tarefa de casa. Sua mãe, dona de casa e analfabeta, tentava em vão ajudar-lhe com o dever. Agora eu consigo, mamãe! Pensou. Algo queimava dentro dela, aquela dor que tanto lhe consumia por tudo o que enfrentava em sua vida trabalhista e pessoal, se extinguia aos poucos e tornava-se a chama que iluminava um novo horizonte na sua existência.
Bruscamente, Nalva sai de seu êxito transe, ao sentir queimar suas narinas com um ardente cheiro. Algo queimando não apenas dentro de si, fazendo sua mente voltar aos eixos: O arroz! Foi então que, ao longe, escutou uma voz clamando por seu nome:
“Que cheiro de queimado é esse Dona Nalva?!”
Foi com essa agonia que o arroz queimado teve que ser contido entre panos para expulsar a nuvem preta de fumaça que tomava conta da cozinha. Mesmo com a presença do queimado ainda pela casa, Dona Nalva se isentou de preocupações. Assim como a casa, sua mente estava tomada por uma nuvem, mas era uma nuvem de realização e que chegou sem avisos prévios: conseguia ler.
FIM DO CARNAVAL
Por Ana Carolina Laurentino Tomaz, Maria Clara Tavares Oliveira, Igor Oliveira de Albuquerque e Vallença Anne Dias Lucas
Marinalva é uma mulher cansada, a vida inteira cumprindo o seu trabalho e pegando o seu ônibus no mesmo horário, observando a infinidade de fios no correr do caminho. O carnaval estava à porta, e apesar do clima urgente e festivo que costurava a cidade, era mais um dia comum, desses de calor intenso e pessoas falando sem parar, embora ela apreciasse o silêncio.
Ao final de mais um expediente, a professora Neiva, da EJA, que a ajudou a aprender a ler e escrever, lhe enviou uma mensagem escrita pelo Whatsapp, perguntando mais uma vez o porquê de ela ter abandonado a turma antes da conclusão do ensino fundamental. Uma mensagem cuidadosa, gentil e encorajadora. A professora Neiva valorizava muito o processo de Marinalva na sala de aula e não conseguia compreender o motivo daquele seu sumiço. A verdade, é que de modo geral, os desfechos da vida das pessoas da classe trabalhadora, quando interpretados por pessoas de outros contextos, são frequentemente vistos como uma tragédia, injustiça - e são mesmo -, mas não sempre. O abandono ou sumiço de Marinalva está mais próximo do exercício da liberdade de escolha do que da sua ausência.
Pois bem, Marinalva estava muito cansada e desejava não fugir mais dessa conversa. Resolveu então explicar o que a levou para a sala de aula, o que a fez desejar continuar os estudos abandonados ainda na infância. E revelou que uma situação de assédio, uma violência naturalizada - como ela hoje já compreende - a motivou a voltar à escola para não passar por mais nenhum constrangimento em seu trabalho. Segue relato:
Marinalva chegou ao serviço como de costume e a madame anunciou que viajaria no carnaval e que ela estaria dispensada do serviço, Marinalva quis esboçar um sorriso, mas se conteve e seguiu para os seus afazeres.
Passados alguns dias, chegou o carnaval e Marinalva estava em paz, em seu direito de descanso e festa. A programação para o domingo carnavalesco era churrasco na casa da vizinha e ela se entregou aos prazeres da folga, deixou o celular de lado e iniciou os festejos.Antes do anoitecer, chegou em casa, certa de que havia deixado tudo organizado e poderia continuar a tomar sua cerveja deitada na rede, sem pressa de acabar.
O cachorro latiu, um carro parou na frente de sua casa e buzinou. O susto foi tamanho que a lata de cerveja virou e nem tempo para apanhar ela teve. Correu para a porta e não acreditou no que viu: era Dayvison, o motorista da patroa. E a presença dele não combinava com carnaval.
Sem muita simpatia, ele comunicou que veio buscá-la conforme orientação da patroa, sugeriu que ela verificasse o celular. Sim, havia uma mensagem, mas não de dona Laura, era um número desconhecido e Dayvison leu para Marinalva. A mensagem dizia: Bom dia Dona Marinalva, aqui é Laurinha, a senhora está bem? Mamãe pediu para avisar que vamos precisar de você no domingo de carnaval, meus sogros mudaram de ideia e resolveram passar o carnaval aqui em casa, e eu, aliás, nós, não poderíamos privar eles do seu tempero maravilhoso! Dayvison irá te buscar domingo às 19h, você dorme aqui e começa a trabalhar de manhã cedinho para não atrasar o café da manhã.
Dona Laura sabia que Marinalva não sabia ler nem escrever, e sempre comunicava por mensagens de áudio. Mas a estrutura familiar da branquitude, principalmente a partir da classe média, desumaniza empregadas e empregados domésticos, desvalorizam a prestação de serviço. Pagam em uma única refeição o valor de um salário, e se indignam diante do direito a folga, descanso, lazer e até adoecimentos dos prestadores de serviço que sustentam seus estilos de vida.
Junto do relato, Marinalva explicou para a professora que não desejava deixar seu emprego, que apesar da família ser muito intransigente em dados momentos, quando estava lá, e o serviço estava feito, ela podia sentar, comer comida boa, descansar um pouco, inclusive. Ela disse que teria ido trabalhar no carnaval, teria ido embora do churrasco mais cedo, o que ela não gostou foi de terem decidido por ela, de uma forma que ela não teve a oportunidade de se preparar. Que sentiu vergonha ao ver que Dayvison estava na porta e ainda mais por não ter conseguido entender nada do que a filha da madame escrevera.
Sem esse fato, possivelmente ela não teria buscado a escola, pois o modelo não nutria outras ambições. A revolta com o ocorrido foi o fator motivador para que ela desejasse e buscasse a escola, e ao considerar concluído a sua busca, após ser alfabetizada, sentiu que ali se encerrava um ciclo e ela poderia tornar a sair do trabalho direto para casa.
Estudar a noite, para a classe trabalhadora como um todo é um grande desafio, algo que podemos classificar como uma redução de danos diante dos inúmeros direitos negados, portanto a permanência na escola no período noturno, ou após um dia de trabalho, que não se encerra ao chegar em casa, representa um imenso desafio na condução dos dias.
Marinalva agradeceu à professora por todo cuidado e dedicação, e reafirmou sua decisão, agora com a aquisição da leitura e escrita, sentia-se confiante para viver seguir sua vida, e agora com a possibilidade de desorganizar o carnaval de alguém, também. Depois de um dia de trabalho, todo mundo só quer ir pra casa, Marinalva não era diferente. E o futuro não era algo que ocupava seus pensamentos, agora ela lia notícias, respondia e lia mensagens escritas, e vez por outra soltava as dela no trabalho, comentando matérias sobre processos trabalhistas e o desfecho desses casos.
O TEMPO QUE NÃO VOLTA
Por Ana Júlia Segundo, Davyd Ribeiro, Eugênia Nobaya e Sabrina Santana.
Você já se perguntou para que vive? Como usa o seu tempo?
Na manhã de um domingo, a patroa me liga avisando que o motorista está vindo me buscar. Me chamo Marinalva, e é assim que uso meu tempo: passo a semana inteira otimizando o tempo das outras pessoas. Mas e o que sobra para mim?
Quando desço do carro da patroa, vejo uma mãe caminhando e brincando com a filha pequena no parquinho do condomínio. É inevitável começar a refletir. Penso nos meus filhos. Não tive tempo para eles, não pude sequer criá-los.
Lembro de mim mesma, com 9 anos, quando tive que deixar a escola para ajudar minha mãe em casa. Hoje, ao ver minha filha, com a mesma idade, sentada no sofá lendo seus gibis, não posso deixar de comparar nossos tempos. Como foram diferentes! Aos 9 anos, ela lê histórias; eu já enfrentava a vida. Agora, aos 40 anos, é que finalmente consigo entender as palavras que aparecem embaixo do repórter no jornal da TV.
Assim que entro na cozinha, ainda vestindo o avental, a patroa aparece com uma lista de pratos para eu preparar. Quando ela sai, fico olhando para aquela lista. Leio os nomes sem grandes dificuldades e percebo o quanto isso me faz feliz. Aprender a ler e escrever foi uma longa caminhada. Enquanto releio a lista, meus pensamentos voltam para a minha família. O que será que eles estão fazendo agora?Hoje à noite, preparei pratos para uma comemoração familiar da patroa. Ela falava com entusiasmo sobre a chegada dos parentes e o quanto estava animada. Enquanto ouvia, não pude evitar pensar: quando terei um momento assim com os meus?
Às 21h, o motorista da patroa me deixou em casa. No caminho, minha mente já estava ocupada com a lista de tarefas que me aguardavam: deixar o almoço pronto, varrer o quintal, lavar o banheiro e organizar tudo para as crianças irem à escola no dia seguinte.
Ao chegar, parei diante da porta do quarto onde minha filha estava. Por um instante, me perguntei: é sempre assim que usarei meu tempo? Então, resolvi deixar a vassoura de lado, encostada na porta. Entrei no quarto e me sentei ao lado dela. Parei e observei quantos gibis ela tem. Nunca havia percebido como são tantos. Enquanto tentava ler a história, pude observar o brilho em seus olhos e sua felicidade em estarmos vivendo aquele momento juntas. Mais tarde, quando deitei na cama para dormir, lembrei que o despertador iria tocar amanhã de manhã, no mesmo horário de sempre, mas a partir de agora, a forma como passarei meu tempo será diferente.
CAMINHO CERTO, OBJETIVO ERRADO
Por Amanda Caroline, Brunna Lara, Josué Lula e Larissa Perigo.
No auge dos seus 18 anos, sem perspectivas de futuro, Felipe não tinha planos para a vida. O dia a dia na comunidade era sempre correria, boletos a pagar, o que comer hoje, sobreviver. Até que então, sua sorte mudou, ele foi intimado por “Bola” – dono da boca, para uma conversa séria. Felipe nem havia se tocado, mas todos ao seu redor, já haviam notado sua facilidade com números. Portanto, aquele talento agora teria um propósito.
“Tu vai estudar, Felipe. A boca precisa de alguém de confiança, que conte rápido e sem erros. Tu vai virar o contador!’
A proposta era irrecusável, negar custaria sua vida. No outro dia, Felipe já estava matriculado na escola. Sua presença era fiscalizada por seus colegas de trabalho. Ele tinha um único objetivo, aprender o máximo que conseguisse sobre matemática, o mais rápido possível. Felipe sabia que não podia errar, por isso transformou esse medo em combustível para ser o aluno mais aplicado da turma.Seu esforço foi logo recompensado. Ele sentiu-se confiante com os novos conhecimentos obtidos, para exercer a sua nova função, e, assim, logo abandonou a escola, sem sequer olhar para trás. Felipe logo mostrou toda sua habilidade, gerenciando a boca com maestria. Logo, a boca do Bola já dominava a região e todos apontavam Felipe como o grande responsável dessa ascensão.
Felipe, que até então, não mostrava ambição ou tendências violentas, começou a mudar com o sucesso repentino, e tomado pela ganância começou a conspirar contra Bola. Como era o funcionário mais estudado e mais organizado, facilmente derrubou o rival, se tornando o novo líder da boca. Planejou e executou o plano de assassinato contra Bola.
O maior temor de Felipe, era como os outros da facção e da comunidade reagiriam ao seu plano, porém o que se viu foi que outras pessoas se inspiraram na história de superação de Felipe, e voltaram a estudar, tornado ele um exemplo a ser seguido dentro da história do tráfico de drogas do Rio de Janeiro. A história de Felipe nos leva a refletir, será que aquele velho ditado “Os fins, não justificam os meios”, está certo? Quantos Felipes existiram nessa história? Quantos deles, ao seguirem caminhos certos com objetivos errados, perdemos no processo? Existe um único caminho certo? A reflexão fica e os resultados da história de Felipe também.
A TABUADA DO CORRE
Por Ana Letícia Silva dos Anjos, Ana Louyse Oliveira da Cunha Rodriges, Maria Alice Silva do Nascimento e Vanessa Susane da Rocha Barbosa
De tudo que eu esperava nessa vida ser obrigado a voltar para a escola não estava na lista. Pensava que podia ser preso, levar um tiro, morrer...Tudo isso era mais provável de acontecer, mas na minha linha de trabalho a palavra do chefe é lei.
- Felipe, o Chefe quer falar com você.
Ouvi meu parceiro falar. Nessa hora meu sangue gelou, enquanto andava até a sala do chefe, tentei lembrar o que tinha feito de errado, mas nada vinha na minha cabeça pra ser chamado assim do nada.
- E aí, o que é que tá pegando?
- O negócio é o seguinte: o comércio tá crescendo, quem vai cuidar da grana agora é você. Tu é meu braço direito aqui, não quero ninguém me passando a perna.
- Cara, eu não tenho estudo pra isso, saí cedo de lá, números não são comigo.
- Então volta pra escola, se vira!
A escola nunca foi importante pra mim, não aprendi nada que servisse pra alguma coisa, nem uma mina arranjei, larguei assim que entrei na vida do crime, mas agora vou ter que voltar, é questão de vida ou morte.No outro dia me matriculei e fui pra aula, cheguei desconfiado, sentei no fundão e fiquei na minha, observando calado. Agora que tenho um motivo, nem é mais tão difícil assim, a professora é firmeza, não me olha torto e até repete a explicação quando não entendo os bagulhos que ela fala. Os números começaram a fazer sentido porque comecei a dar conta dos esquemas na boca, aprendi a somar, subtrair, multiplicar e até dividir.
Depois que consegui o que queria, comecei a me perguntar se valia a pena continuar na escola, lembrei que a professora disse que os números servem pra organizar a vida, agora tô aqui trampando no corre, calculando se um dia volto pra lá.
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