A EJA em Contos e Crônicas, Parte 4

Trazemos, aqui, mais contos e crônicas produzidas por estudantes do nosso componente Educação de Jovens e Adultos, no período 2024.2. Os esclarecimentos sobre a forma como o trabalho foi pensado e outros textos produzidos, podem ser acessados em:

https://ejaemmovimento.blogspot.com/2025/02/a-eja-em-cronicas-e-contos-parte-1.html

https://ejaemmovimento.blogspot.com/2025/02/a-eja-em-cronicas-e-contos-parte-2.html e

https://ejaemmovimento.blogspot.com/2025/02/a-eja-em-contos-e-cronicas-parte-3.html

Boa leitura e parabéns à turma! 


A Transformação de um ideal

Por JULIETA BEZERRA MAGNUS ÁTILA, MONICK IZZI e RITA CÂMARA

Marinalva tinha um sonho, aprender a ler e escrever e ao realizar o que tanto almejava, percebeu que aprendera mais do que isso. Estar naquela sala de aula durante várias noites da semana ajudou-a a repensar sobre a sua realidade, à medida em que sua professora desenhava na lousa a linha do tempo da conquista de direitos trabalhistas, no Brasil e no mundo.

Enquanto acompanhava as explicações e informações expostas pela professora, Marinalva fazia suas reflexões sobre algumas das ações e atitudes de sua patroa e se elas estariam de acordo com o que ela estava aprendendo naquelas aulas. 

Passou a se perceber mais como uma pessoa que, como qualquer outra, possuía direitos. E sua curiosidade a mobilizava a contrastar o que estava aprendendo sobre direitos trabalhistas na escola e o que estava vivenciando na residência onde trabalhava há quase três anos. E o contraste era imenso. Tão imenso como o desejo de se apropriar de mais conhecimentos sobre os seus direitos e buscá-los.

Com o passar do tempo, já era notável a mudança de atitude de Marinalva, o que não passou despercebido por sua patroa. O cotidiano já revelava uma Marinalva comentando sobre a definição de um horário fixo de trabalho, os fins de semana livres, o direito a não trabalhar nos feriados...

E eis que em um belo domingo de sol,  o motorista da sua patroa chega em sua casa: - Bom dia Marinalva! A patroa pediu pra vir te buscar, chegaram algumas visitas de surpresa e ela está precisando de você. 

Marinalva logo pensou em todas as datas comemorativas que perdera por causa do seu trabalho naquela casa e respondeu de imediato, de uma forma tranquila, mas cortante, como as facas afiadas da casa da patroa: - Hoje é domingo, e além disso, aniversário do meu filho. Eu não vou deixar de comemorar o nascimento dele pra ir trabalhar! Agora eu conheço os meus direitos e deveres. Diz a ela que hoje não vai dar, tá?! 

Conversando com outros empregados, no dia seguinte, o motorista comentou que enquanto retornava para o carro, pareceu ter ouvido Marinalva dizer para si mesma - mas como se quisesse dizer para ele e para quem pudesse ouvir - algo como "ninguém mais me engana. Aquela mulher já não comanda mais minha vida". Mas, não tinha certeza...


O QUE ACONTECEU COM FELIPE?

Por Fabio Matias de Oliveira, Fernanda Alice M. De Lucena Silva, Rannia Karine Pereira Henrique e Thaís Marinho da Silva Camilo

Mora no Rio de Janeiro. Jovem, vivia com seu pai, um homem simples, que perdeu sua esposa para a pobreza. Ela desenvolveu uma grave pneumonia e não conseguiram arcar com o custo das medicações. 

Estamos no início dos anos 1990, fim da guerra fria, início da luta de um pai para criar seu único filho, a única e possível herança de sua esposa. Felipe acabara de ficar órfão, tinha um pai, mas um pai enfadado, sem expectativas ou esperança. Ali, em meio à essa realidade, ainda criança, decidiu que daria ao seu pai uma velhice digna. 

Atravessou sua infância em meio a situações próprias de uma guerra civil. O Estado não cumprindo com seu papel de proteger seus cidadãos. Pelo contrário, amedrontava, usava de força bruta, ceifava a vida dos que aos seus olhos, não tinham direito a dignidade: os pobres, ou seja, aqueles que não eram nada, que estavam à margem e no meio de um conflito em que, de um lado, aparecia a polícia, treinada para lidar com a força violenta aqueles considerados inimigos da sociedade; os quais, em contraponto, usavam da força e da violência para se protegerem da polícia.

Agora jovem, Felipe olha ao seu redor e em meio àquela pobreza e violência desenfreada percebe as conquistas materiais dos seus amigos. Sente medo, mas, também, cansaço e indignação em ver o quanto o pai trabalha sem que suas condições de vida sejam efetivamente modificadas. É nesse contexto que o tráfico cruza seu caminho como uma alternativa. 

Ele já era conhecido na comunidade por sua inteligência e dedicação aos estudos, quando criança. Mas, para ajudar ao pai nas despesas da casa já havia largado a escola. Mas, eis que retorna, em razão de um convite (ou seria uma pressão?) para assumir a contabilidade da boca de fumo.

O estudo da matemática, para ele, tinha uma finalidade: organizar financeiramente a boca. E rapidamente conseguiu se apropriar daqueles conteúdos que o faziam aprender como destrinchar as questões contábeis em torno do negócio do tráfico.

Felipe se interessa pela contabilidade, deslumbrado e vislumbrando o ganho de grandes quantias de dinheiro descobre um esquema de banqueiros chamado “Overnight”, em que as pessoas depositavam valores em suas poupanças para que durante a madrugada os banqueiros realizassem aplicações e movimentações e devolvessem pela manhã parte deste lucro aos titulares. Ao descobrir este esquema, Felipe, hoje responsável por todo aporte financeiro da boca, tem a brilhante e nebulosa ideia de aplicar todos os dias o valor arrecadado advindo do tráfico, recebendo e retirando seu lucro.

Na triste e fervorosa manhã de segunda, 15 de março de 1990, ao chegar no banco, para fazer a retirada do dinheiro do tráfico, investido no Overnight, Felipe se depara com uma multidão barulhenta, indignada e confusa, em torno do estranho aviso de que o banco estaria fechado para balanço e não abriria naquela dia.

Transtornado e sem entender o que estava acontecendo, retorna à comunidade e vendo o noticiário local, fica sabendo que o Presidente, em seu primeiro dia empossado, havia, orgulhosamente, confiscado o dinheiro que os brasileiros arduamente guardavam nas cadernetas de poupanças, como uma medida para conter a hiperinflação. Aquilo era seu fim, pois todo o dinheiro do tráfico estava aplicado e ele precisava prestar contas ao chefe da boca naquele mesmo dia.

Enquanto tentava entender o que era explicado pelos apresentadores do telejornal, Felipe rememorava e lamentava todo aquele seu percurso de ter voltado aos estudos, ter se interessado pela contabilidade e assumido as contas da boca...

Agora, enquanto o noticiário chega ao fim, ele escuta as batidas fortes à sua porta como tiros de rifles. São seus companheiros de “trabalho”, vindo levá-lo para prestar contas e dar ao seu chefe, o dinheiro da boca…

Luzia

Por Anne Larissa de Souza Alves, Fabíola de Araújo Fernandes Cavalcante, Maria Clara de Oliveira Gomes e Mariana Silva dos Santos

Luzia era daquelas mulheres que viviam com os pés no chão e a cabeça preocupada. Trabalhando como empregada doméstica, o tempo parecia escorrer pelos seus dedos como água, entre vassouras, panelas e o chamado insistente da patroa. O trabalho era duro, não tinha hora para terminar, nem dia para começar, mas ao ver a patroa lendo os jornais, a vontade de aprender a ler sempre aparecia. A decisão de voltar para a escola não veio fácil, no início, ela ria e achava que a alfabetização era coisa só para criança. Porém, as palavras ainda eram um mistério que ela queria desvendar.

Na comunidade em que morava, escutou sobre a EJA, não custou e se matriculou. No primeiro dia, o frio na barriga bateu, voltar para aquele espaço que um dia frequentou, a fazia se sentir no mínimo estranha, “será que devo voltar?” assim pensou, até a professora recebê-la com um sorriso e um acolhedor “boa noite” fazendo o nervosismo ir embora. A turma parecia agitada, muitos jovens, alguns tinham a idade do seu filho mais velho, mas ela não desistiu, estava decidida, a escola novamente faria parte da sua rotina. Enquanto estudava refletiu que as letras eram até conhecidas, mas ela queria mesmo era dominá-las e aprender a ler seria como abrir uma porta para um novo mundo.

Certa noite, enquanto cozinhava, o arroz queimou no momento em que ela lia animada o jornal. Em vez de se frustrar, Luzia riu. “Calma, queimar o arroz é só um sinal de que estou aprendendo", pensou. Com o tempo, ela percebeu que não queria um diploma, principalmente ao começar a ler os anúncios na rua e a entender as notícias. O mundo não era mais um mistério. Ela se sentia empoderada. Um dia, compartilhou suas conquistas com a família. “Agora eu sei ler!" disse, com brilho nos olhos. Luzia concluiu que sua jornada era sobre se redescobrir, não necessariamente estar na escola.

No amanhecer, já preparando o café no trabalho, ao olhar pela janela via a cidade pulsando, mas observava as flores. Então, vieram as lembranças dos momentos na escola que não existiam mais, dos momentos de estudo que ficaram para trás e percebeu que o queimado do arroz não foi um fracasso, mas foi uma oportunidade de florescer. E, com o coração tranquilo, fiel as suas escolhas e ao que ela queria ser, sabia que a sua história, aqui escrita, ela poderia enfim ler.


Os Cálculos do Tráfico

Por Fábio Marcelino Dantas, John Kleofas, Katilane Lopes de Moura e Sabrina Abdias Dantas

Felipe cresceu num labirinto de becos e vielas onde as oportunidades de uma vida melhor pareciam sempre trancadas a sete chaves. A sua realidade nunca lhe oferecera alternativas, apenas duras imposições. Aos 17 anos, a porta que se abriu foi a do “movimento”, convocando-o para um papel que não escolheu: o de contador da boca de fumo. Para o cargo, os pré-requisitos eram simples: ser bom de matemática e não roubar o dono dos negócios. O chefe – conhecido por sua frieza – não perdoava erros, muito menos traições. Os cálculos necessários não eram complexos, mas precisavam ser exatos. E foi ali, entre números e perigos, que Felipe percebeu que a escola poderia ter uma utilidade prática para sua nova atividade. 

A professora Clara estranhou sua matrícula na escola. Felipe não aparentava ter interesse pelos estudos, não demonstrava querer um diploma. Em sala, era aplicado, mas distante de tudo e de todos. Aprendeu rápido as operações de multiplicação e divisão, bem como os segredos das porcentagens e juros. Em poucos meses, dominava tudo o que precisava para organizar as finanças da “boca”, sem cometer erros. E então, como uma sombra, desapareceu da escola.

Felipe nunca contou à professora o verdadeiro motivo de sua ida. Para ele, a escola foi uma ferramenta, um meio para um fim. Mas, nos momentos de silêncio, enquanto ajustava os cálculos na clandestinidade, lembrava-se da sala de aula, da voz de Clara explicando conceitos que pareciam tão distantes de sua realidade. E, talvez, em outro tempo, pudesse encontrar uma razão para voltar. 

Sem se dar conta, Felipe começava a ver o mundo com os novos olhos. Aprender a ler e interpretar números mudou mais do que sua relação com o trabalho - alterou a maneira como ele se via. Ele começou a questionar seu papel naquele ambiente, a sonhar com um futuro diferente, embora não soubesse exatamente como alcançá-lo. Haviam noites em que ele folheava os livros da escola que não devolvera, guardados em um canto do quarto e tentava imaginar a vida além da comunidade. As vivências que tivera, os números descobertos e as palavras que aprendera eram sementes, e ele esperançava que, cedo ou tarde, elas germinassem.

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