Alfabetização de jovens e adultos: o necessário primeiro passo...mas olhando para frente.

Por Alessandro Augusto de Azevêdo

No último dia 13 de março, ocorreu uma importante reunião no auditório do Instituto Kennedy, onde, além da própria Governadora Fátima, toda a sua equipe dirigente da Secretaria de Educação, estavam os representantes das universidades, União dos Dirigentes Municipais de Educação e até mesmo do setor empresarial (FIERN e Sistema S). Toda essa mobilização em torno de uma pauta considerada como urgente por todas as pessoas presentes: os baixos índices de alfabetismo entre jovens e adultos de nosso Estado.
Há de se saldar essa iniciativa, dado que há muito tempo não víamos um governo estadual conferir tamanha importância e visibilidade a essa questão. Como regra geral, os governos estaduais, tão-somente reproduziram em seu território os programas federais, em formato e conteúdo.
No presente contexto, em que o MEC nada oferece à EJA (primeiro, porque não tem proposta e, depois, porque está paralisado, enterrado até o pescoço em disputas entre “olavistas” e militares), a atitude da SEEC de colocar publicamente a questão da alfabetização de jovens e adultos como uma prioridade nos toma de grandiosa esperança, confirmando que a linha política dessa nova gestão (diferentemente da anterior) é de apostar na garantia do direito à educação para todxs.
Tendo participado dessa reunião em que se lançou a proposta de se iniciar a construção de uma nova proposta alfabetização de jovens e adultos no Rio Grande do Norte, nos sentimos na obrigação de trazer aqui algumas reflexões que já as explicitamos naquela oportunidade, só que de forma muito breve, e que neste espaço podemos aprofundar um pouco mais.
Há de se notar que em meio a discursos onde substantivos como “vergonha”, “chaga”, “escuridão” e “atraso” foram utilizados à exaustão para caracterizar o fenômeno e a situação dos sujeitos não alfabetizados, foi uníssono que o "primeiro passo" deveria ser dado e que aquela reunião tinha esse caráter.
Nesse sentido, a equipe da SEEC apresentou o que considera os pressupostos para a ação proposta, com os quais partilhamos integralmente: (a) a democratização do acesso, permanência e sucesso na aprendizagem; (b) a preocupação com a diversidade e a inclusão dos sujeitos; (c) a perspectiva de formação humana integral; e (d) a atenção para com a integração das ações educativas com a formação profissional.
Também consideramos essencial a ideia de que o processo educativo que se está propondo deverá comportar ações de curto, médio e longo prazo; articulação com organizações da sociedade civil e movimentos sociais; e (o que para mim é importantíssimo) deverá ultrapassar o caráter compensatório para se afirmar como uma formação continuada dos sujeitos.
Essas indicações todas são um avanço, mas quem se ateve a fazer a leitura dos pronunciamentos realizados durante a reunião deve ter percebido que será necessário um intenso trabalho de diálogo voltado à afinação de algumas dessas perspectivas com os pressupostos apresentados pela equipe da SEEC, isso porque ali, em algumas falas, se revelaram visões distintas do que seja o processo de alfabetização de jovens e adultos, sua condução pedagógica e política.
Compreender e debater isso publicamente é fator decisivo para sabermos que rumo uma ação como essa deverá tomar, quais são seus limites e potencialidades.
E isso não significa que assim se esteja à procura de questiúnculas sem importância que possam paralisar as iniciativas mobilizadoras desde seu início, mas, pelo contrário, que se está a tratar de um pilar fundamental que, por isso, pode determinar o êxito ou não do que se está propondo. Portanto, trata-se de um debate que é simultaneamente, teórico, prático, político e pedagógico. E educativo para todxs que dele se propõem a participar.
Como antecipado no título desta postagem, entendê-las é condição a partir da qual podemos imaginar se os olhos que darão o primeiro passo estarão olhando para frente ou para trás.
Mas que visões distintas seriam essas? Em que suas diferenças são relevantes?
Em primeiro lugar, o próprio conceito de "pessoa alfabetizada". Quando utilizamos essa expressão estamos a pensar que uma pessoa alfabetizada possa der definida (como faz o IBGE) como quem lê e escreve um bilhete simples ou, como propunha a UNESCO, alguém que além de ter o domínio do conjunto de habilidades de leitura, escrita e numeramento, também é capaz de identificação, entendimento, interpretação, criação e comunicação (inclusive digital)?
A relevância disso está em que o que o IBGE denomina de “alfabetizado”, a UNESCO denomina de “analfabeto funcional”. Ou seja, se pensamos de uma forma, podemos ter um imenso programa de formação de “analfabetos funcionais” (!!!???).
Se pensamos de outra forma, teremos aí algo bem distinto. Daí que o que a UNESCO denomina de “alfabetização”, dentro da nossa realidade brasileira, coincide com o que se trabalha em termos de Ensino Fundamental I na EJA. O que nos leva, portanto, à discussão de que nosso “primeiro passo” deve se voltar para a frente, no sentido de que seja uma ação de Educação de Jovens e Adultos, que integre uma política para a modalidade e não focada apenas em uma parte do processo.
Aliás, é isso que explica o êxito da superação de níveis altíssimos de analfabetismo entre a população acima de 15 anos em países tão diferentes como Cuba (nas décadas de 1960 e 1970), Alemanha (no século 19) ou Coréia do Sul (após a década de 1950). Em ambos países (mesmo em contextos históricos distintos) o movimento de alfabetização de jovens e adultos casou-se com a garantia de continuidade de aprendizados no âmbito da educação básica.
Em nosso país, desde 1947, governos da União, Estados e municípios têm protagonizado iniciativas mais ou menos duradouras de alfabetização de jovens e adultos, porém, a velocidade com que ocorre a redução da massa de não alfabetizados entre as pessoas com mais de 15 anos é lenta. Um dos problemas está em que a grande maioria delas, em geral, compartilham de uma mesma perspectiva: (a) os sujeitos não alfabetizados são “coitados”, que padecem de uma vida numa “escudirão” e que, por isso, precisam ser “salvos” pela ação educativa; (b) o processo de alfabetização pode ser feito por qualquer pessoa com mais escolaridade ou tempo de estudo que o sujeito “analfabeto”, desde que bem “treinado”; (c) é um processo rápido, de alguns meses, conduzido como uma grande “campanha de salvação” dessas almas, a partir de procedimentos homogêneos para uma população vista como homogênea, porque caracterizadas por uma “lacuna”, uma “negatividade” (razão do processo pedagógico); e (d) uma vez “alfabetizado” o sujeito (o piloto automático está ligado), não é mais necessário investir-se na continuidade do processo de letramento, pois o próprio sujeito desdobraria-se nesse sentido.
Ainda que adotemos uma visão estritamente economicista do problema, essa ideia de alfabetização é indefensável, na medida em que a "pessoa alfabetizada" que ela propõe não dá conta das exigências de letramento e numeramento que o próprio mundo do trabalho hoje coloca a quem pretende se inserir com um mínimo de autonomia profissional.
O que nosso passado e as experiências internacionais nos ensinam?
Em primeiro lugar, programas centralizados e uniformes revelam-se incapazes de dar conta da diversidade territorial e sóciocultural dos sujeitos, o que implica que a definição de conteúdos e estratégias de implementação considerem esses fatores.
Em segundo lugar, os registros e as pesquisas em âmbito nacional e internacional nos mostram que o formato “campanhista”, de apelo à “urgência” de resolução do problema, embora exerçam uma forte (e importante) papel de sensibilização e mobilização social não se desdobram necessariamente em resultados efetivos e duradouros, com raras exceções. Isso porque já se sabe que a aquisição das práticas da lecto-escrita e do numeramento implica um período relativamente longo de aprendizagem, cuja consolidação exige a estruturação de oportunidades de continuidade de estudos e um ambiente estimulante ao uso das aprendizagens desenvolvidas.
Em terceiro lugar, se o fenômeno da baixa alfabetização de jovens e adultos está associado aos processos de desigualdade sócio-econômica e de marginalização cultural, os programas educativos precisam se conectar com iniciativas, oficiais ou não, que se articulam a políticas de inclusão sócio-econômica e desenvolvimento local, possibilitando elevação de escolaridade, mas também, qualificação em sua inserção no mundo do trabalho e como cidadã(o), além de ampliação dos seus horizontes culturais.
Para isso, dar o “primeiro passo” com os olhos voltados à frente, significa: (a) pensar que deve se tratar não apenas de um projeto de alfabetização, mas de uma política de Educação de Jovens e Adultos, portanto, há de se ter uma articulação entre Estado, municípios e sociedade civil em um espaço institucional, no sentido de planejar as ações desse campo – podendo ser este o espaço o Comitê proposto pela própria SEEC em sua apresentação na reunião à qual nos referimos inicialmente; (b) considerar a diversidade de possibilidades de ações, de acordo com a diversidade de sujeitos – o que nos remete a reconhecer a necessidade de múltiplas abordagens metodológicas no processo pedagógico; e (c) construir um movimento de chamada pública dos jovens e adultos pouco ou não escolarizados, de modo a identificar a demanda real nesse campo – o que exige o planejamento interinstitucional de um censo de jovens e adultos que não estão freqüentando a escola, bem como a identificação de suas necessidades de aprendizagem e espaços possíveis para o seu atendimento (inclusive espaços não escolares).
No mais, há de se recuperar um sentimento unânime que perpassou as falas dos presentes naquela reunião: não há como imaginarmos uma sociedade melhor sem que pautemos com seriedade a questão do baixo alfabetismo entre jovens e adultos e é muito alvissareiro que em seus primeiros meses o atual governo estadual já a traga à baila e, modestamente, nosso Projeto já ofereceu uma colaboração ao novo governo, expresso em abaixo assinado coletado quando de nosso último encontro em novembro de 2018, com um rol de observações sobre qual a política de Educação de Jovens e Adultos que almejamos ver implementada em nosso Estado. 

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