Precisamos saber mais sobre a EJA no RN

Por Alessandro Augusto de Azevêdo

O respeitado noticiário Saiba Mais publicou, neste 9 de abril, matéria intitulada "RN intensifica combate ao analfabetismo com atendimento recorde na EJA". Como sou pesquisador da área e como dever de ofício mantenho-me atento às publicações relacionadas a ela, lá fui eu ler a matéria, ansioso em me apropriar do que o título da matéria me prometia.

Após a leitura me mobilizei a escrever este artigo de opinião porque as lacunas e incongruências da matéria são flagrantes. Como se trata de um veículo de comunicação que respeito por ter um papel importante na nossa mídia independente e por tratar de dados e informações que dizem respeito a uma área na qual milito e estudo, não me sinto confortável em não participar da discussão. De modo que este artigo tem como objetivo contribuir com a cobertura jornalística sobre o assunto, considerando, claro, que não sou jornalista. Mas, contribuir também com o diálogo em torno da EJA no nosso Estado, como forma de devolver à sociedade aquilo que ela investe em mim, como servidor público.

Antes, uma observação sobre a manchete, reveladora do quanto ainda precisamos melhorar na divulgação e no entendimento do que é a modalidade EJA junto aos nossos jornalistas e a uma parcela significativa da sociedade, já que ao associar analfabetismo e atendimento na EJA, a matéria reforça um imaginário bem ultrapassado de que a EJA é uma modalidade voltada apenas à alfabetização de pessoas jovens, adultas e idosas, quando, a própria LDB a define como uma modalidade da Educação Básica. Assim, embora a questão da alfabetização de pessoas com mais de 15 anos esteja na pauta da EJA, ela não se reduz a ações para esse público, porque a EJA é uma modalidade que atravessa toda a Educação Básica, do Ensino Fundamental ao Ensino Médio.

Por outro lado, considerar dados de um programa de alfabetização no cômputo do atendimento da EJA, precisa ser feito com os devidos cuidados, já que os dados sobre programas de alfabetização de pessoas jovens, adultas e idosas normalmente não são incluídos no Censo Escolar, onde se registram as matrículas na EJA, no Ensino Fundamental e Ensino Médio. Esses programas têm uma dinâmica própria e, no mais das vezes, bem independente da dinâmica de matrículas na modalidade EJA. Aliás, uma das questões que permanentemente se coloca nessa relação entre programas de alfabetização e a modalidade EJA está na dificuldade de dimensionarmos quantas pessoas egressas dos programas de alfabetização são incorporadas ao sistema de educação básica. Não sabemos (e a matéria nada diz sobre isso) como (e se) as coordenações dos programas conseguem desenvolver plenamente esse tipo de encaminhamento. Sabe-se que a incorporação da alfabetização no âmbito do Ensino Fundamental - EJA é um caminho desejável e possível, porém, pouco se sabe como isso está sendo efetivado em nosso Estado. Assim como pouco se sabe se há (e como está estruturado) um plano de metas para uma progressiva redução do analfabetismo de jovens, adultos e idosos, nos próximos anos no RN.

Vamos à matéria. Ela afirma que a EJA alcançou a marca de 28 mil estudantes em 2025. Para isso, soma-se o número de pessoas envolvidas em programas de alfabetização (estimados em 7.095 pessoas) com o número dos demais matriculados (que seria em torno de 21.690). Deduzindo, daí, que haveria um recorde de atendimento na modalidade. Porém, como a própria matéria não traz dados dos anos anteriores, induz o leitor tratar-se de um recorde em relação aos números dos anos anteriores, sem que saiba ao certo o tamanho desse suposto salto.

Felizmente, temos dados detalhados sobre matrículas da EJA que nos auxiliam a pensar o processo de oferta e de acesso à modalidade, disponibilizados no sítio do INEP (https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/inep-data/estatisticas-censo-escolar), cujo último ano de referência é 2024. São dados públicos que, mesmo com algumas imprecisões, não devem ser desconsiderados. Antes pelo contrário, deveriam ser o ponto de partida da construção de políticas públicas e estratégias de luta daqueles que defendem que o direito à educação seja válido para todos, independentemente da idade.

E aí, temos um primeiro ruído na informação apresentada pela matéria, segundo a qual, somente a Rede Estadual teria matriculado 21.690 estudantes de EJA, sendo 1.824 nos anos iniciais do Ensino Fundamental, 5.950 nos anos finais e 13.916 no Ensino Médio. O ruído se deve ao fato de que os dados do Censo Escolar de 2025 ainda não foram publicados (porque sua coleta se encerra em maio deste ano). Mas, ainda que se dê crédito à sua veracidade e a consideremos como um dado de 2025, o número representará não um avanço, e sim mais uma oscilação para baixo, em relação aos dados de 2024.

Isso porque, segundo o INEP, em 2024, a rede estadual do RN havia matriculado na EJA, 23.632 pessoas, o que representa um pouco mais do que informado na matéria. Porém, se considerarmos a série histórica, de 2015 a 2019 e de 2022 a 2024 (desconsiderando, portanto, o período da pandemia, pelas suas particularidades), o que temos não é um recorde, mas apenas uma leve oscilação positiva, após anos de seguidas quedas de matrículas. Considerando-se, pois, os números de matrículas dos anos anteriores, o que temos é uma progressiva redução de matrículas, cujas oscilações para cima pouco representam substanciais avanços.

Senão vejamos: em 2015, a Rede Estadual, matriculou 31.433 pessoas, tendo um breve aumento no ano seguinte para 33.127. Com a ascensão da profa. Cláudia Santa Rosa à Secretaria de Educação do Estado, em inícios de 2016, os números começaram a decrescer, chegando, em 2018, a 27.853. No ano da posse da profa. Fátima Bezerra, como governadora do Estado, em 2019, as matrículas na EJA, da rede pública estadual, tiveram um aumento de apenas 190 matrículas.

A partir de 2022, com o retorno das atividades presenciais nas escolas, tivemos um natural afluxo menor de matrículas na EJA em todo o país. E na rede pública estadual, foram alcançadas 23.065 matrículas. No ano seguinte, nova queda (pequena), com 22.947 matrículas. E em 2024, um número que é superior aos dois últimos anos, mas não representa recorde algum, já que é muito inferior, até mesmo, ao pior número alcançado no último ano do seu antecessor e o primeiro ano de sua gestão. Ou seja, se "o estado implementou políticas públicas que resultaram em um aumento significativo no número de matrículas", somente podemos considerar os efeitos de 2024, em comparação com 2022. Ainda assim, a percepção de que pouco mais de 500 novas matrículas representem um "aumento significativo" é contentar-se com muito pouco.

Claro que alguém poderia dizer que a redução das matrículas ocorre porque estaríamos conseguindo escolarizar as pessoas, mas, as pesquisas do IBGE não nos autorizam essa afirmação. A título de exemplo, no RN, enquanto, em 2024, 35.510 pessoas acima de 15 anos era matriculada no Ensino Fundamental-EJA, o IBGE revelava que em 2023, o número de pessoas com mais de 14 anos, sem instrução estava em 224 mil pessoas e com Ensino Fundamental Incompleto em 902 mil pessoas. Ou seja, é um público de milhares potencialmente matriculáveis, mas sem acessaram a EJA.

O que assistimos, ano após ano, no campo da EJA é, mais, o resultado de ações espontâneas: por um lado, dos cidadãos e cidadãs - pressionados por exigências sociais que demandam uma certificação de escolaridade ou por projetos pessoais - que ainda apostam que poderão dar cabo da conclusão de seu percurso escolar, apesar da pouca flexibilidade das estruturas de tempo e ritmo do sistema. Do outro lado, encontramos as tentativas de segmentos das gestões estadual e municipais de busca e ampliação das matrículas e de oferta da EJA, que se revelam iniciativas isoladas, dependentes de um eventual engajamento mais efetivo de um(a) gestor(a) ou de um grupo de professore(a)s de uma ou mais escolas.

O único dado que a matéria traz que podemos considerar como digno de menção como "um recorde" diz respeito ao número de escolas da rede pública estadual que estariam oferecendo a EJA, que, segundo a matéria, seria de 202 escolas. Certamente este número diz respeito ao ano de 2025, já que os dados de 2024 apontam que seriam 117, portanto pouco mais que a metade do que foi noticiado.

Essa ampliação é, de fato, muito importante, dado que a capacidade de criação de novas turmas e o acolhimento da demanda de EJA pelas escolas, no país inteiro, tem se configurado um desafio. Por um lado, não existe uma política de Chamada Pública, Busca Ativa ou mobilização institucional para acolher esse público. Nenhum cidadão que queira saber onde está sendo oferecida uma turma de EJA consegue obter essa informação pelo caminho mais simples de acessar uma página da internet das secretarias (municipais ou estadual) de educação ou a partir de uma ligação telefônica.

Além disso, mesmo que ele consiga se matricular, ainda terá que enfrentar um organização curricular pouco flexível, que não se adequa aos seus ritmos de vida e trabalho. Enquanto os sujeitos da EJA (em geral, trabalhadores precarizados) vivem uma rotina organizada na imprevisibilidade, a escola ainda se organiza de forma previsível, esperando que ele se adeque a ela.

Quaisquer tentativas de superação desse quadro implica processos complexos que envolvem iniciativas intersetoriais e territoriais para identificação e mobilização qualificada da demanda para a EJA, além de políticas que efetivem uma diversificação e flexibilização das formas de atendimento dos sujeitos da EJA, acolhendo os sujeitos não buscando preencher supostas lacunas de suas trajetórias passadas, mas em suas expectativas e necessidades atuais de aprendizagem.

Esses dados nos indicam que a garantia do direito à Educação Básica para os sujeitos da EJA implica políticas públicas que combinem atração/acolhimento da demanda potencial da EJA e estratégias de estímulo à permanência. Além de mobilização social efetiva para mapeamento qualificado de demanda, há de se considerar a oferta de processos pedagógicos significativos, diferentes formatos de atendimento dessa demanda, integrados num todo articulado, capaz de responder em condições adequadas às necessidades e expectativas desse público diverso em termos de faixa etária e experiências de vida; inserção precária no mundo de trabalho e submetido aos efeitos cotidianos dos preconceitos racial e de gênero.

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