As barreiras além dos muros da escola

Olá colegas,

Publicamos, aqui, matéria publicada pelo Correio Braziliense, retrantando a realidade da EJA da capital federal. Realidade não muito diferente da que conhecemos e vivemos aqui em Natal e no nosso Estado.

Por Daniela Garcia, Correio Braziliense, publicação em 19/05/2014.

Daqui a três anos, quando se formar no ensino médio, Catiane Nascimento, 25 anos, pretende ser chamada de mãe pela única filha, 3 anos. Desde que a menina nasceu, as duas estão separadas porque a piauiense, radicada em Brasília, dorme, de segunda à sexta-feira, na casa onde trabalha com o babá na Asa Sul.Desde fevereiro, ela decidiu retomar os estudos no Centro de Educação de Jovens e Adultos da Asa Sul (Cesas).O plano, de médio prazo, é deixar de vez essa rotina de distância da menina. “É chato não ser chamada de mãe. Por isso, estou estudando. Quero ter mais tempo para ficar com ela”, argumenta.

Catiane faz parte de um grupo de milhares de brasileiros que tenta, com dificuldade, voltar aos estudos por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA). A partir de hoje, oCorreio publica a série de reportagens “ODifícil Retorno” que conta a trajetória de pessoas que enfrentam desafios além dos muros da escola para completar o ensino regular. Segundo dados de 2011, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, o Brasil tem 56,2 milhões de pessoas com mais de 18 anos que não frequentam a rede de educação e não têm o ensino fundamental completo. Para elas, o sistema público indicado são as turmas da EJA. No entanto, a adesão à política vem diminuindo nos últimos anos. Dados do Censo Escolar, divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), mostram que, em2007, haviam 4.985.338 alunos matriculados na rede; Em 2013,esse número caiu para 3.772.670. Em seis anos, houve uma diminuição de 25%nas matrículas do sistema.

Catiane está longe da escola há 10 anos, desde que deixou o Piauí para trabalhar em Brasília. Enquanto cuida de três crianças no trabalho, a filha, Lorrane, fica sob os cuidados da amiga Eva de Cássia, no Recanto das Emas, a 25km do Plano Piloto.Desde janeiro, a babá cursa, à noite, a 5ª série do ensino fundamental. No sistema da EJA, Catiane pode fazer uma série a cada seis meses. Para ela, faltam, no mínimo, três anos para se formar no ensino médio. Até lá, a babá deve continuar a pagar R$ 250 por mês à amiga, com quem divide o aluguel da casa no Recanto. “Ela já têm três filhos. Eu pago para ela cuidar da minha também. Aí, a Lorrane acaba chamando ela de mãe e eu de Cátia”, conta.

Entre os estudantes do período noturno, é comum encontrar casos de renúncia familiar em razão do tempo dedicado ao estudo. O professor de história Júlio César de Castro costuma dizer que esses jovens e adultos devem transpassar “um muro bem alto ali fora” toda vez que vão para aula. “Eles têm que vencer o muro do cansaço, das obrigações do trabalho ou do abandono em casa para estar aqui”, comenta.

Professores e especialistas da EJA afirmam que a maioria dos alunos desiste diante dos obstáculos do cotidiano. Ao observar de perto a evasão escolar em um colégio público de Planaltina, Roseane Freitas, à época graduanda em licenciatura em ciências naturais pela Universidade de Brasília (UnB), resolveu investigar os motivos da saída dos estudantes. “Eu estava fazendo estágio e percebi que os alunos iam evadindo ao longo do semestre. No fim, ficavam poucos. Eu queria descobrir quais eramas dificuldades”, justifica.

Abandono
Publicada em janeiro deste ano, a pesquisa tem a intenção de revelar a percepção dos próprios estudantes sobre a evasão escolar. Foram aplicados 48 questionários para três turmas do ensino noturno, com idades que variavam de 15 a 55 anos. A maioria deles tinha entre 15 e 35 anos (70%) e era de trabalhadores (75%) em ocupações diversas como manicure, doméstica, motorista e operador de caixa.

Grande parte dos entrevistados (39,6%) apontou o desafio de conciliar trabalho, família e estudo como um dos maiores entraves para se manter na EJA. O segundo maior obstáculo seria o horário de saída do emprego (12,5%) que fica muito próximo da hora do início das aulas. “Vários alunos saem do trabalho e vão direto para a escola, às vezes, chegam atrasados ou entram no segundo horário.Muitos dependem do transporte público que se mostra insatisfatório para atender as necessidades da população”, argumenta Roseane.Na terceira colocação, os alunos elegeram o cansaço (10,4%) entre as razões do abandono.



“Este problema educacional não está associado a umaspecto particular, mas envolve vários contextos: a escola, a família, a cultura, as políticas econômicas e sociais e ao próprio aluno”, avalia a pesquisadora.

Interrupções são constantes

Interromper mais de uma vez os estudos é quase regra entre os estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA), dizemespecialistas do setor. Hoje na sala de aula, Joelma Santos, 38 anos, confirma a tese: “Eu já parei quatro vezes”. A garçonete explica que dois fatores foram determinantes para mais essa tentativa. No emprego, o patrão prometeu um aumento de 10% no salário, se ela concluísse o ensino médio. E em casa, a família incentivou. “Minhas filhas me irritaram muito até eu me matricular”, diz, ao esboçarumsorriso.

Como objetivo de manter os alunos em sala, professores tendem a ser mais flexíveis. A modalidade, por exemplo, não conta com boletim ou conselho de classe. Contudo, a gestão escolar, seja estadual, seja da prefeitura, tem a autonomia na instrução de regras das escolas, segundo a Lei de Diretrizes e Bases de 1996. A política mais maleável nem sempre, entretanto, é praticada nas escolas do Brasil, comenta a professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Analise da Silva. “Já vi escolas que só liberam a merenda às 20h40 para segurar os alunos na escola. Eles, emsua maioria, vêm direto do trabalho e querem comer antes de estudar. Não tem por que inventar essas regrinhas. A EJA não está lidando com crianças.”

Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em EJA da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Debora Cristina Jeffrey também defende que os educadores estejam atentos à realidade dos alunos. Segundo ela, os professores têm o desafio de adequar o currículo à vida dos trabalhadores, com pouco tempo disponível para estudo. Nas escolas do Distrito Federal, os alunos ouvidos pelo Correio dizemque é com um os docentes não exigirem dever de casa ou os deixarem fazer prova com consulta.

Entre os estudantes do Cesas, o professor de história Júlio César de Castro é conhecido por ser flexível e entender a situação de cada aluno. Com a folha de chamada na tela do computador, ele mostra inúmeros F, que representam as faltas. “Essas aqui são mãe e filha. A filha teve bebê e a mãe teve de se ausentar para ajudar”, exemplifica.

Na última quarta-feira, Júlio César foi surpreendido por uma aluna quando estava no comando da última aula da classe. “Eu estava explicando a matéria, ela veio em minha direção e disse: ‘Professor,me desculpe. Eu vou embora, estou cansada demais’. Dá vontade de responder: ‘Me desculpe, você’. Porque foi a sociedade que tirou esse direito dela”, conta. (DG) Colaborou Renata Mariz

Estava explicando a matéria, ela veio em minha direção e disse: ‘Professor,me desculpe.Eu vou embora, estou cansada demais’.Dá vontade de responder: ‘Me desculpe, você’. Porque foi a sociedade que tirou esse direito dela”

Júlio César de Castro,
professor de história do Cesas

PALAVRA DE ESPECIALISTA
Processo por toda a vida
Na história contemporânea recente da educação de jovens e adultos no Brasil há duas marcas fortes: a Constituição Federal de 1988 em que o ensino fundamental foi estabelecido como direito público subjetivo, inclusive para os que não tiveram oportunidade de cursá- lo ou concluí-lo na “idade própria” e a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 que garantiu a oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades. Juntas, garantiram o direito à escolaridade em reconhecimento da grande dívida histórica para com os jovens e adultos não escolarizados.

Sem diminuir o peso da dimensão escolar, há umcrescente reconhecimento da contribuição de outros processos de aprendizagem, não estritamente escolares, para o desenvolvimento do potencial e da autonomia de cada joveme adulto:a formação inicial e continuada para o trabalho, a educação ambiental, a educação  cidadã, a educação para os direitos humanos, os esportes, as atividades de leitura e as bibliotecas, assim como as atividades culturais. Essa dimensão não escolar abrange todos os espaços e atividades em que, como jovens e adultos, aprendemos a desenvolver a nossa inteligência potencial e a contribuir para a vida cultural, social e produtiva da sociedade. A satisfação dessa diversidade de necessidades de aprendizagem e a garantia da inclusão dos que ainda não tiveram o seu direito à educação respeitado, requerem uma educação ao longo e ao largo da vida.

TIMOTHY D. IRELAND, coordenador da cátedra daOrganização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) da EJA na Universidade Federal da Paraíba

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