O virus, a escola e a exclusão: uma tríade a se pensar (uma carta para Paulo Freire)

O texto a seguir nos foi enviado por uma professora atuante na EJA, no Centro de Educação de Jovens e Adultos Senador Guerra, de Caicó, que pediu para não ser identificada por razões pessoais.

Como se encontra, amigo e  professor Paulo freire!

Sou professora, mulher do sertão do Seridó, filha de um homem negro e uma mulher branca, e no geral, descendente de uma família simples, humilde, mas sedenta de conhecimento.
Sempre estudei em escola pública e me criei ouvindo o quanto essa escola era limitada e nos limitava, afinal, tínhamos concorrentes gigantes e mais inteligentes do que a gente, alunos dessas escolas pobres e sucateadas. E, portanto, a esses gigantes, caberiam as cadeiras da universidade.
Isso me deixava revoltada, angustiada, muitas vezes, até desestimulada. No entanto, mesmo sem nunca ter ouvido palavras como feminismo, empoderamento, eu me perguntava: “Não sou eu um ser capaz? Não posso correr atrás daquilo que os outros tem tão fácil, pela agilidade que o poder do  dinheiro lhes proporcionou? Terei que viver para toda a vida, essa segregação  social, que a todo tempo, tentam internalizar dentro de mim e de tantos e tantos outros que vivem em situação precária como eu?"
Ainda assim, não desisti. Corri atrás, li noites e mais noites sem fim, incessantemente, muitas vezes, sem nem compreender aquilo que estava a deixar meus olhos percorrer. Contudo, continuava aquela leitura, pois quanto mais páginas eram devoradas, mais eu me sentia devorando, de forma mesmo antropofágica, aqueles que me deixavam sentir pequena, pelo conforto e privilégio de classe que desfrutavam. Fazia da leitura, do folhear os livros da matemática, da química, da biologia e tantos outros, uma saga sem fim, pois assim como a desigualdade gerada pelo capitalismo me deixava - e os meus irmãos de classe social - à deriva, eu precisava provar que era capaz e, oxalá, até melhor do que eles, os pequenos burguesinhos, filhos dos poderosos burgueses.
E assim, prossegui muitos dos meus dias e anos. Perdi noites de minha vida, abri mão de momentos efêmeros, mas que poderiam ter gerado muitas alegrias. Por ventura, quando se nasce mulher, pobre e filha de um homem negro e bastardo, tudo isso junto vai para a base da pirâmide e o fardo a ser carregado não era nada fácil, pois pesava, mais e mais, dia após dia.
Mas é isso. Cresci, consegui vencer muitos obstáculos, ultrapassar muitos concorrentes, equiparar-me intelectualmente a muitos pequenos burgueses, sem desfrutar, no entanto, do poder da equidade.
Por muitas vezes, me iludi, pensando que estava desfrutando das mesmas oportunidades, afinal, pensei que a tão falada igualdade de oportunidades, era um fato, só precisava que eu fizesse minha parte para perceber que tudo dependia apenas de mim, do meu esforço, das minhas escolhas. Enganei-me. A escola do meu tempo, com os olhos que eu tinha naquela época, era perfeita, haja vista que me ensinava isso: que para eu atingir o sucesso e ser feliz, dependia do caminho que eu traçaria.
Pobre de mim, da escola e de meus professores! Todos éramos vítimas de um sistema que continuava reproduzindo o que a conjuntura política, capitalista e neoliberal injetava em nossas mentes, no currículo formal e informal. E assim seguíamos o bonde, numa trilha que nos massificava e homogeneizava, posto que a escola era apenas só uma das células opressoras, que de forma disciplinada e silenciadora, dominava nossos corpos e nossas mentes.
Diante de muitas quedas e tropeços, posso dizer que venci, cheguei a algum lugar, posto que saí de um ponto A de pobreza, invisibilidade e submissão e cheguei a um nível exponencial de A elevado a 2ª potência.
E por que evoluí, se permaneço na mesma classe A? Pois socialmente, continuo sendo pobre, mais cresci em algumas escalas: escolaridade, criticidade e o direito a ter o que antes era impossível: casa própria, um carro e uma certa estabilidade, por ter conquistado um vínculo, como professora da rede estadual. E esses critérios conquistados, o foram porque eu soube fazer as escolhas certas e, portanto, correr atrás do que a escola me ensinava, dizendo que as oportunidades eram oferecidas igualmente, no entanto não eram igualmente atingidas por todos? Não. Claro que não. Essas conquistas foram possíveis, porque por muitos momentos, tive que me desumanizar, esquecer do que era o amor, o prazer e os sonhos de uma menina-adolescente. E logo a vida me amadureceu e me tornou uma mulher. Mulher no sentido mais exaustivo que a palavra possa proporcionar. E por que tanta exaustão? Por que a escola esqueceu de me mostrar um forte recorte social que atinge a todos nessa pirâmide que mensura vidas: classe, raça e gênero.
Então, hoje percebo que tive que correr demais, dormir de menos, lutar incansavelmente, para fazer daquela frase: “as oportunidades vem igualmente para todos, mas só os que querem algo na vida, são capazes de abraça-las e seguirem em frente”.
Nossa, quantas mentiras. Quanta dosagem de alienação e ilusão foi colocada em nossas vidas. E quantos de nós não nos deixamos embriagar com essa dosagem tão forte de um remédio tão consolador. Mas, hoje, em contato com leituras críticas, libertadoras e feministas, me emancipei. E sei que as oportunidades não vem para todos, pois não nos são dadas as mesmas condições de alcançá-las. E não porque nos falte interesse pessoal e individual, mas porque o Estado não nos potencializa, por meio da equidade. Portanto, não nos possibilita concorrer, nas mesmas condições parar alcançarmos os mesmos objetivos: uma carreira promissora.
E lamentavelmente, hoje, alguns anos depois de ter concluído meu ensino médio, vejo um ciclo de desigualdade se reproduzir ainda mais com força e rigidez, pois estamos diante de um cenário de pandemia, onde essas discrepâncias se afloram ainda mais. E a educação é colocada como única saída para a superação de uma crise, não mais econômica, mas estrutural e humana. Lemos o tempo todo, nas redes sociais, clichês do tipo: "quando tudo isso passar, sairemos melhores".
Meu querido mestre, como essa mudança será possível se o acesso à informação e comunicação, que deve ser direito de todos, se limita a alguns? Se vemos estudantes de escolas públicas, em atividades remotas, sofrendo e se eximindo dos espaços virtuais das salas de aula, por não terem acesso à internet, computadores ou até mesmo ao próprio celular?
É, meu professor...está difícil, muito difícil, pensar na revolução dos livros, quando essa leitura passa, agora, a não ser materializada pelas folhas em que deixávamos nossas impressões, no passar o dedo de uma em uma, ou até mesmo destacar com um marcador de texto. Agora, temos que usar do click , do toque digital, pois o líquido, o fugaz, está alojado num universo virtual. E tudo, não mais que de repente, pode também ser atacado por um vírus, não o vírus do COVID-19, mas o vírus do espaço cibernético.
É...continuo angustiada, entediada, da mesma forma como iniciei essa carta para ti. Só que com uma única diferença: naquela fase da escola, eu era apenas uma menina jovem, instigada por sonhos que me tornariam uma mulher realizada. Hoje, sou essa mulher, não mais realizada, pois a educação dia após dia, deixa de ser um direito de todos, pelos vírus que contaminam espaços físicos e virtuais.
Até breve. Quero, logo, logo, estar contigo na revolução tão sonhada. Mas, nesse espaço além da vida, pois aqui, a coisa foi e continua como antes, dominada pelos privilégios de classe, raça e gênero.

Beijos

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